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Políticas culturais e o Modelo Barcelona

Relato crítico da Palestra de Jordi Martí, realizada em 14 de março de 2006, por Durval Lara

Vista geral de Barcelona a partir do Museu Nacional d'Art de Catalunya


A transformação pela qual passou Barcelona, de uma cidade de importância regional, cuja economia era baseada na indústria, para uma metápolis efervescente com um enorme  poder de atração, não foi casual, mas fruto das políticas públicas e culturais adotadas nos últimos 25 anos. O chamado “Modelo Barcelona” é considerado um marco nas transformações urbanas do século XX e uma referência  em boa parte do mundo ocidental, notadamente na América Latina. No entanto alguns aspectos destas intervenções começam a ser questionados diante do aparente esgotamento de suas possibilidades, centradas no turismo, na realização de grandes eventos e no incentivo ao setor de serviços. Barcelona sofre hoje de uma contradição: é muito admirada pelos turistas mas nem tanto pelos seus cidadãos. Este foi o quadro desenhado por Jordi Martí, atual Sub-diretor-gerente do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, professor de gestão cultural nas universidades de Barcelona e Pompeu Fabra e coordenador do plano estratégico da capital catalã de 1996 a 1999.

Na palestra, promovida pelos Seminários Aula São Paulo, Jordi Martí intercalou uma visão retrospectiva das estratégias adotadas em Barcelona com algumas reflexões e avaliações, tomando como premissas:

a) o entendimento da cidade de hoje como uma realidade complexa, tanto em seu aspecto físico como no imaginário das pessoas; a acumulação de múltiplas experiências nos leva a tomar a cidade como um ecossistema formado por camadas superpostas (Metápolis);

b) vivemos uma época na qual a cultura assume uma nova dimensão e perpassa vários setores; nestas circunstâncias as políticas culturais devem estabelecer uma reflexão sobre como isto está se dando e redefinir seus instrumentos e formas de atuação;

c) a globalização é a era das cidades vistas como espaços de geração de significados; paralelamente há uma grande crise no conceito de espaço público, muitas vezes invadido ou substituído por espaços privados;

d) como lemos as diferentes realidades? As cidades da América Latina e as européias têm diferenças enormes mas algumas semelhanças podem ser encontradas entre elas, mudando-se as escalas e proporções.

 

Rua da Cidade Velha


Um pouco de história

Jordi identifica três períodos distintos a partir do fim da ditadura franquista (1975). São eles os anos 80, os anos 90 e a virada para o século XXI, momentos que ele denomina “Felices Ochenta, “La transformación de los 90” e “Que vienne el s. XXI!!”. Entre 1975 e meados dos anos 80, Barcelona viveu uma fase de euforia: a identidade catalã foi resgatada em toda sua plenitude, as tradições e as festas foram recuperadas ou reinventadas num movimento atávico. A ocupação das ruas e demais espaços públicos como espaço de celebração e encontro marca todo este período. Com a autonomia relativa garantida, o passo seguinte foi a estruturação política e o fortalecimento das instituições locais. No plano cultural não houve propriamente uma política mas uma intensa atividade traduzida na criação de inúmeros espaços comunitários de atividades em prédios antigos reformados para tal fim. A arte pública – aqui entendida como obras de arte em espaços públicos – ganha importância ao  valorizar os artistas locais. Iniciativas nascidas fora das instituições ganham corpo e tornam-se marcos importantes desta época. São elas o festival de Verão e a criação do Teatro Municipal num antigo mercado de flores. A criação da infra-estrutura e as intensas atividades culturais  decorrem do mesmo entusiasmo que move as festas e celebrações: é a afirmação da cultura catalã após 40 anos de repressão. É um momento, diz Jordi, de muita criatividade e pouquíssimo dinheiro.

Palau de la música Catalana
Fachada do Museu de Arte Contemporânea, projeto de Richard Méier, 1995


Na passagem da década de 80 para 90 é elaborado o Plano Estratégico de Barcelona que irá priorizar os aspectos econômicos buscando inserir Barcelona entre as cidades referenciais do mundo. O plano aponta para dois grandes eixos de atuação, a saber, um maior incentivo ao setor de serviços e o estímulo ao turismo. Para isso a cidade ‘precisava’ ter mais museus de padrão internacional, salas de concertos e de ópera, equipamentos culturais modernos e atrativos. Porém, um dos marcos desta época é um grande evento esportivo: as Olimpíadas de Barcelona, em 1992, evento que dará visibilidade mundial à cidade. São feitas inúmeras intervenções no espaço urbano, sendo talvez a mais importante a remodelação da antiga área portuária que dará lugar à Vila Olímpica e que irá abrir Barcelona para o mar. “Barcelona, abierta al mar” é o slogan da década de 90. A recuperação do centro tem uma enorme dimensão simbólica para a população local, além de tornar-se um pólo de atração turística. A estratégia de gestão adotada é a de parceria público-privado e concretizada por meio de empresas ágeis e flexíveis, com capital misto, porém sem deixar de lado os aspectos públicos das intervenções. No antigo bairro chinês (Raval), são criadas duas universidades, o Museu de Arte Contemporânea e o Centro de Cultura Contemporânea. Alguns dos equipamentos culturais são edifícios modernos (como o MacBa, projetado por Richard Méier e inaugurado em 1995) mas a grande maioria ocupa prédios antigos restaurados ou reformados.

Turistas na Rambla (Foto: Divulgação)

Em 1996, pela primeira vez Barcelona recebeu mais turistas em busca de suas atrações do que homens de negócios. Há um grande aumento no setor de serviços e indústrias se deslocam para o interior ou simplesmente fecham suas portas. O slogan adotado – Barcelona, a cidade do conhecimento – procura expressar os pontos principais da nova estratégia, no qual a cultura é vista como geradora de riqueza, fator de coesão social e elemento de promoção internacional. Este novo plano que será implementado a partir de 1999 com o nome de Plano Estratégico para a Sociedade da Informação, preconiza a patrimonialização da cidade e a incorporação das manifestações culturais à nova era digital. As atividades culturais devem procurar ser auto-sustentáveis e vistas como atração turística para a cidade. Um papel relevante neste processo é ocupado pelo Instituto de Cultura de Barcelona (ICB) que passa a gerenciar e divulgar de forma centralizada os eventos de iniciativa pública e privada. Segundo Jordi, inicialmente, este processo foi difícil pois precisou quebrar as estruturas de “igrejinhas” em torno de instituições e de campos. O ICB busca organizar o que ele denomina estrutura relacional, onde o público e o privado agem conjuntamente.

São implantados consórcios de gestão que incorporam a lógica gerencial na gestão cultural. Contrato, autonomia e avaliação são os três pilares onde se assentam as bases desta nova forma de gestão.  Alguns projetos simbólicos deste período são: Barcelona Plató – Ciutat de cinema, uma oficina que oferece serviços gratuitos e apoio aos produtores de audiovisuais – que existe até hoje -, o ano Ano Gaudi (2002) e o Fórum de Cultura de 2004. Para Jordi os dois primeiros projetos tiveram enorme sucesso ao envolver a população e atrair turistas do mundo todo, o que não ocorreu com Fórum de Cultura. O ICB teve um papel determinante nos dois primeiros eventos assumindo um papel de “agitador cultural”, estimulando a participação de inúmeras instituições e centralizando a divulgação por meio de um website. Jordi vê o Fórum de Cultura - uma realização de diversos órgãos públicos, e gerida por uma entidade criada exclusivamente para tal fim – como um grande evento que custou 300 milhões de euros, mas que não alcançou seus objetivos. Trouxe poucos benefícios à cidade, não houve engajamento da população e ao terminar não deixou mais que um conjunto arquitetônico que tem gerado muitas polêmicas. Para Jordi este tipo de evento pode ser comparado a algumas bienais de arte que não nascem na cidade, aterrissam nela, explodem por um momento e a seguir decolam,  vão-se embora sem deixar grandes marcas.

Finalizando, Jordi traça um quadro das tensões na virada do séc. XX para o XXI. Ao contrário dos anos 70, hoje há muito dinheiro e poucas idéias. Novos desafios estão surgindo e os mais relevantes seriam:

a) o aumento da diversidade cultural;
b) a crise do espaço público (privatização);
c) a passagem de bem cultural para produto cultural (numa clara conotação economicista);
d) a crise no consenso urbano: a cidade como projeto.

Acrescente-se a isto as tensões entre a cidade de Barcelona e a província da Catalunha, que ainda guarda muitas semelhanças com seu passado, e o fato da cidade estar ao “norte do sul e ao sul do norte”. Hoje Barcelona assiste à sua terceira onda migratória, que amplia a diversidade e traz novos desafios relacionados ao emprego, educação, saúde e moradia. Por outro lado, só recentemente se percebeu que o turista não vai a Barcelona para visitar seus museus e salas de concerto – que não têm acervo e nem tradição similar aos demais congêneres nas capitais européias -, mas sim pelo ambiente da cidade, pelo espaço público que ela oferece.

Sagrada Família, projeto de Antoní Gaudí

Torre Agba, projeto de Jean Nouvel

O sucesso dos planos estratégicos pode ser medido pela transformação da cidade num pólo de serviços e num importante destino que atrai cerca de 20 milhões de turistas por ano, o que levou o valor de uso dos espaços públicos ser superado por seu valor de troca. O fenômeno da privatização desses lugares, ou simplesmente a troca do espaço público pelo espaço privado ocorre de forma acelerada, no mesmo ritmo em que os bens culturais dão lugar aos produtos culturais.

De um ponto de vista mais conceitual, sua proposta para superar as novas tensões limita-se a acrescentar contrapontos aos 3 eixos tradicionais das políticas culturais:

a) ao eixo patrimônio e identidade, acrescenta a diversidade cultural;
b) à democratização da cultura (com foco no receptor), a democracia cultural (com foco na produção) e,
c) ao suporte à criação, as indústrias culturais.

Jordi tece críticas suaves ao modelo adotado por Barcelona e propõe pequenas correções de rumo para enfrentar as tensões do século XXI, já que o chamado modelo Barcelona,  fruto de um consenso, aos poucos foi perdendo força. Para ele a terceira fase do planejamento recente de Barcelona (a partir de 1996) tem uma dimensão claramente cultural e os problemas da imigração e da diversidade cultural estão razoavelmente equacionados. Jordi acha que as políticas culturais utilizam ferramentas inadequadas e desatualizadas que não atendem às demandas atuais. O vetor das novas políticas deve centrar-se na criação de infra-estruturas voltadas à produção cultural em grande escala (que ele chama de “indústrias culturais”), dentro de um planejamento, com uma gestão empresarial e administradas por consórcios ou parcerias público-privado.

Centro de Cultura Contemporânea - BAC!04 la piel. Obra de Agàpit Borràs: Els imperis sempre és vermella i tacada de sang, bruta, greixosa i aspre.

 

Comentários
A expectativa gerada pelo título da palestra (Políticas culturais e Modelo Barcelona) foi frustrada ao não privilegiar as políticas culturais no seu sentido estrito, mas sim as estratégias para transformar Barcelona num novo tipo de cidade. O envolvimento de Jordi na formulação e implementação do plano de 1996 a 1999 explica o apoio às estratégias adotadas e as críticas amenas que faz ao modelo.

Se na primeira fase (anos 80) a cultura catalã é valorizada e estimulada, e as intervenções na Cidade Velha evitam o processo de gentrificação, tão comum nestes casos, o mesmo não se dá a  partir da década de 90. As novas estratégias apontam para um processo de internacionalização da cidade que volta seu foco para o turismo e os serviços. O chamado “Modelo Barcelona”, ao eleger a cultura como vitrine para atrair turistas, faz uso das manifestações culturais com finalidades primordialmente econômicas. Não fogem à regra as formas de gestão e de parcerias propostas por Jordi, para criar “indústrias culturais”. Espanta a naturalidade da colocação.

Ao se voltar excessivamente para fora, Barcelona esqueceu-se de sua própria gente, parecem dizer os críticos. É o caso de Horacio Capel, professor da Universidade de Barcelona, que vê nestas políticas muito mais um plano de marketing vitorioso na promoção imobiliária da cidade do que algo que traga benefícios a seus cidadãos. Critica o modelo adotado (uma sociedade de serviços com especial ênfase à alta tecnologia) que busca soluções internacionais nos modelos dos países escandinavos e da costa oeste norte-americana. “...ninguém parece pensar num modelo próprio, espanhol ou catalão. Um modelo em que as próprias tradições, e em primeiro lugar a própria história industrial e a flexibilidade que implica a existência de pequenas e médias empresas com capacidade de inovação, poderia ser uma boa base para a transformação” (CAPEL, 2006). Para este autor Barcelona está passando por um processo de destruição de seu tecido social ao voltar-se excessivamente para o turismo e deixar de dar a devida atenção a seu patrimônio histórico e à sua população.

As críticas mais radicais são desferidas por Manuel Delgado, antropólogo e professor na Universidade de Barcelona. Para ele muitas das carências sociais de Barcelona poderiam ser sanadas com o dinheiro utilizado no mega-evento que foi o Fórum de Cultura (2004). Em relação à estratégia voltada aos serviços e ao turismo, Delgado afirma que a cidade parece que, ao não ter mais nada para vender, passa a vender-se a si própria. Barcelona é para ele “um parque temático que trata os cidadãos como turistas, dos quais somente se espera que admirem, consumam e se calem”. (DELGADO, citado por CAPEL, 2006). A cidade torna-se refém das grandes empresas e seu projeto vai se definindo sem a participação da população. O mais temerário é que tal plano é considerado um modelo, portanto algo a ser seguido, copiado e reproduzido.

O contexto dessa apresentação, a Aula São Paulo, sugere que há uma relação entre o modelo adotado em Barcelona e possibilidades para a cidade de São Paulo. As diferenças entre a cidade catalã e a capital paulista são evidentes, mas vale registrar as críticas mais enfáticas ao Modelo Barcelona nesse momento em que São Paulo também ensaia os primeiros passos em direção à revitalização urbana através da cultura.

(texto e fotos: Durval Lara)


Notas:

Metapólis é o nome de um grupo fundado em 1998, em Barcelona, do qual fazem parte Vicente Guallart, Willy Müller, Manuel Gausa. Segundo Müller, um dos fundadores do Grupo Metápolis, ele é “fruto de um momento da cidade de Barcelona, entre o êxito dos Jogos Olímpicos e a indefinição de um novo evento internacional, como o Fórum Mundial da Cultura. (...) Nós temos buscado, de forma aberta e sempre como work in progress, explicar essas profundas transformações que fazem com que a sociedade avance na mudança do seu sistema e que nós, que trabalhamos construindo o mundo físico, devemos compreender. É o caso, como define muito bem Guallart, de uma mudança no sistema operacional” Entrevista a Eduardo Pasquinelli em: http://www.vitruvius.com.br/entrevista/muller/muller_2.asp.
O termo Metápolis é um novo conceito para a metrópole digital que emerge “por entre a metrópolis da era industrial.  A cidade é agora um lugar de lugares, onde diversos modelos coexistem, cada um com as suas qualidades intrínsecas que os diferenciam dos restantes” . (Metapolis Dictionary of Advanced Architecture: City, Technology and Society in the Information Age. Actar, setembro/2003).

A palestra, realizada no dia 14 de março de 2006, faz parte de um projeto vinculado à Prefeitura de São Paulo que pretende discutir o “presente e o futuro da cidade”. Aula São Paulo : http://www.aulasp.prefeitura.sp.gov.br/aulasp.htm

Para maiores informações ver plano estratégico do governo da Catalunha para a sociedade de informação (http://www.gencat.es/csi ou http://www.localret.es)

5 A “gentrificação” é o processo de enobrecimento de determinadas áreas, anteriormente populares.


Referências:

CAPEL, Horacio (2006). De nuevo el modelo Barcelona y el debate sobre el urbanismo Bracelonés. Revista bibliográfica de Geografia y Ciências Sociales (Serie documentol Geo Crítica). Universidade de Barcelona. Vol. XI, no. 629, 25 de enero de 2006.  http://www.ub.es/geocrit/b3w-629.htm#_edn6. Consultado em março de 2006.