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A ESTÓRIA SE REPETE, por Carla Zaccagnini

A estória se repete

 

Pode parecer piada ou pretensão de amador, mas o primeiro que imaginei, quando ainda pensávamos no tema do infinito para a número 8 (¥), foi escrever um texto sobre o eterno retorno na literatura. A argentina. Em especial pensando em Borges, como não podia deixar de ser, e em Cortázar. Reli “Una flor amarilla”, um dos contos de Final del juego (1956), de Cortázar, e reli Borges reescrevendo a mesma idéia em “La trama”, um dos fragmentos de El hacedor (1960). Lendo esses e outros contos, de novo, constatei o inevitável: nada que eu escreva explicará melhor o que os dois já dizem em suas ficções, de maneiras tão diferentes e próximas. E entre as formas de dizê-lo de novo – como se fosse o mesmo, mas outro – escolhi a tradução, por um gosto pessoal e por ser, talvez, um paralelo ao que ambos contos descrevem. Segue, portanto, Uma flor amarela.

 
Parece piada, mas somos imortais. Eu sei pela negativa, eu sei porque conheço o único mortal. Contou-me sua história num bistrô da rue Cambronne, tão bêbado que não lhe custava nada dizer a verdade ainda que o patrão e os velhos clientes do balcão rissem até o vinho lhes sair pelos olhos. Em mim, deve ter visto algum interesse pintado no rosto, porque se achegou firme e acabamos nos dando o luxo da mesa num canto onde se podia beber e falar em paz. Contou-me que era aposentado da prefeitura e que sua mulher tinha voltado à casa dos pais por uma temporada, um modo como outro qualquer de admitir que o tinha abandonado. Era um cara nada velho e nada ignorante, de rosto ressecado e olhos tuberculosos. Realmente bebia para esquecer, e o proclamava a partir do quinto copo de tinto. Não senti nele esse cheiro que é a assinatura de Paris mas que, ao que parece, só os estrangeiros cheiramos. E tinha as unhas cuidadas, e nada de caspa.

 
Contou que num ônibus da linha 95 tinha visto um garoto de uns treze anos, e que depois de olhá-lo por um tempo descobriu que o garoto se parecia muito com ele, pelo menos se parecia com a lembrança que guardava de si mesmo com essa idade. Pouco a pouco foi admitindo que se parecia em tudo, o rosto e as mãos, a mecha caindo na testa, os olhos muito separados; e mais ainda na timidez, na forma em que se refugiava numa revista de quadrinhos, o gesto de jogar o cabelo para trás, a torpeza irremediável dos movimentos. Parecia-se com ele de tal maneira que quase o fez rir, mas quando o garoto desceu na rue de Rennes, ele desceu também e deixou plantado um amigo que o esperava em Montparnasse. Procurou um pretexto para falar com o garoto, preguntou-lhe por uma rua e ouviu já sem surpresa uma voz que era sua voz da infância. O garoto ia para essa rua, caminharam timidamente juntos umas quadras. A essa altura uma espécie de revelação caiu sobre ele. Nada estava explicado mas era algo que podia prescindir de explicação, que se tornava nebuloso ou estúpido quando se pretendia —como agora— explicá-lo.

       
Resumindo, de um jeito de conhecer a casa do garoto e, com o prestigio que lhe dava um passado de instrutor de escoteiros, abriu caminho até essa fortaleza de fortalezas, um lar francês. Encontrou uma miséria decorosa e uma mãe envelhecida, um tio aposentado, dois gatos. Depois não lhe custou muito que um irmão seu lhe confiasse o filho que andava pelos quatorze anos, e os dois garotos ficaram amigos. Começou a ir todas as semanas à casa de Luc; a mãe o recebia com café requentado, falavam da guerra, da ocupação, também de Luc. O que tinha começado como uma revelação organizava-se geometricamente, ia tomando esse perfil demonstrativo a que as pessoas gostam de chamar fatalidade. Inclusive era possível formulá-lo com as palavras de todos os dias: Luc era outra vez ele, não existia mortalidade, éramos todos imortais.

 
—Todos imortais, velho. Veja, ninguém tinha podido comprová-lo e coube a mim, num 95. Um pequeno erro no mecanismo, uma prega do tempo, um avatar simultâneo em vez de consecutivo, Luc deveria ter nascido depois da minha morte, e em vez disso... Sem contar a fabulosa coincidência de encontrá-lo no ônibus. Acho que já lhe disse, foi uma espécie de certeza total, sem palavras. Era isso e acabou. Mas depois começaram as dúvidas, por que nesses casos nos tratamos de imbecis ou tomamos tranqüilizantes. E junto com as dúvidas, matando-as uma a uma, as demonstrações de que não estava equivocado, de que não tinha razão para duvidar. O que vou lhe dizer é o que mais risos provoca nesses imbecis, quando às vezes invento de lhes contar. Luc não somente era eu outra vez, mas ia ser como eu, como este pobre infeliz que lhe fala. Não precisava mais que vê-lo brincar, vê-lo cair sempre mal, torcendo um pé ou deslocando uma clavícula, esses sentimentos à flor da pele, esse rubor que lhe subia ao rosto assim que lhe perguntavam qualquer coisa. A mãe, ao contrário, como gostam de falar, como nos contam qualquer coisa mesmo que o garoto esteja ali morrendo de vergonha, as intimidades mais incríveis, as anedotas do primeiro dente, os desenhos dos oito anos, as doenças... A boa senhora não suspeitava de nada, claro, e o tio jogava xadrez comigo, eu era como da família, até lhes adiantei dinheiro para chegar a um fim de mês. Não me deu nenhum trabalho conhecer o passado de Luc, bastava intercalar perguntas entre os temas que interessavam aos velhos: o reumatismo do tio, as maldades da porteira, a política. Assim fui conhecendo a infância de Luc entre xeques ao rei e reflexões sobre o preço da carne, e assim a demonstração foi se cumprindo infalível. Mas entenda-me, enquanto pedimos outra taça: Luc era eu, o que eu tinha sido de menino, mas não o imagine como um molde. Era antes uma figura análoga, compreende, ou seja que aos sete anos eu tinha deslocado um pulso e Luc a clavícula, e aos nove tínhamos tido respectivamente sarampo e escarlatina, e além disso a história intervinha, velho, em mim o sarampo tinha durado quinze dias enquanto Luc tinha sido curado em quatro, os progressos da medicina e coisas do tipo. Tudo era análogo e por isso, para por um exemplo ao caso, bem poderia acontecer que o padeiro da esquina fosse um avatar de Napoleão, e ele não sabe, porque a ordem não se alterou, porque não poderá se encontrar nunca com a verdade no ônibus; mas se de alguma maneira chegasse a se dar conta dessa verdade, poderia compreender que tem repetido e que está repetindo Napoleão, que passar de lava-pratos a dono de uma boa padaria em Montparnasse é a mesma figura que saltar da Córsega ao trono da França, e que escarvando devagar na história da sua vida encontraria os momentos que correspondem à campanha do Egito, ao consulado e a Austerlitz, e até perceberia que algo vai acontecer com sua padaria daqui a uns anos, e que acabará numa Santa Helena que talvez seja um quartinho num sexto andar, mas também vencido, também rodeado pela água da solidão, também orgulhoso da sua padaria que foi como um vôo de águias. O senhor percebe, não?.

 
Eu percebia, mas opinei que na infância todos temos doenças típicas a prazo fixo, e que quase todos quebramos alguma coisa jogando futebol.

 
—Já sei, não lhe falei mais que das coincidências visíveis. Por exemplo, que Luc se parecesse comigo não tinha importância, ainda que a tenha tido, sim, para a revelação no ônibus. O verdadeiramente importante eram as seqüências, e isso é difícil de explicar porque tocam no caráter, em recordações imprecisas, em fábulas da infância. Nesse tempo, quero dizer quando tinha a idade de Luc, eu tinha passado por una época amarga que começou com uma doença interminável, depois, em plena convalescência, fui brincar com os amigos e quebrei um braço, e logo que saí disso me apaixonei pela irmã de um colega e sofri como se sofre quando se é incapaz de olhar nos olhos a uma garota que está debochando de nós. Luc adoeceu também, apenas convalescente o convidaram ao circo e ao descer das escadarias escorregou e deslocou um tornozelo. Pouco depois sua mãe o surpreendeu uma tarde chorando ao lado da janela, com um lencinho azul espremido na mão, um lencinho que não era da casa.

       
Como alguém tem que se fazer de contraditor nesta vida, disse que os amores infantis são o complemento inevitável dos machucados e das pleurisias. Mas admiti que a do avião já era outra coisa. Um avião com hélice a mola, que ele tinha trazido para seu aniversário.

 
—Quando lhe dei o avião me lembrei uma vez mais do Meccano com que minha mãe tinha me presenteado aos quatorze anos e do que me aconteceu. Aconteceu que estava no jardim, apesar de que se aproximava uma tempestade de verão e se ouviam já os trovões, tinha começado a montar um guindaste sobre a mesa da pérgola, perto da porta da rua. Alguém me chamou de casa, e tive que entrar um minuto. Quando voltei, a caixa do Meccano tinha desaparecido e a porta estava aberta. Gritando desesperado corri à rua onde já não se via ninguém, e nesse mesmo instante caiu um raio no chalé da frente. Tudo isso aconteceu como num único ato, que eu estava recordando enquanto dava o avião a Luc e ele ficava olhando-o com a mesma felicidade com que eu tinha olhado meu Meccano. A mãe veio me trazer uma xícara de café, e trocávamos as frases de sempre quando ouvimos um grito. Luc tinha corrido à janela como se quisesse atirar-se ao vazio. Tinha o rosto branco e os olhos cheios de lágrimas, alcançou a balbuciar que o avião tinha se desviado em seu vôo, passando exatamente pelo buraco da janela entreaberta. «Não se vê mais, não se vê mais», repetia chorando. Ouvimos gritar mais embaixo, o tio entrou correndo para anunciar que tinha um incêndio na casa da frente. Compreende, agora? Sim, é melhor tomarmos outra taça.

 
Depois, como eu me calava, o homem disse que tinha começado a pensar somente em Luc, na sorte de Luc. Sua mãe o destinava a uma escola de artes e ofícios, para que modestamente abrisse o que ela chamava de seu caminho na vida, mas esse caminho já estava aberto e somente ele, que não teria podido falar sem que o tomassem por louco e o separassem para sempre de Luc, podia dizer à mãe e ao tio que tudo era inútil, que qualquer coisa que fizessem o resultado seria o mesmo, a humilhação, a rotina lamentável, os anos monótonos, os fracassos que vão roendo a roupa e a alma, o refugio numa solidão ressentida, num bistrô de bairro. Mas o pior de tudo não era o destino de Luc; o pior era que Luc morreria por sua vez e outro homem repetiria a figura de Luc e sua própria figura, até morrer para que outro homem entrasse por sua vez na roda. Luc já quase não lhe importava; de noite, sua insônia se projetava mais alem até outro Luc, até outros que se chamariam Robert ou Claude ou Michel, uma teoria ao infinito de pobres diabos repetindo a figura sem sabê-lo, convencidos de sua liberdade e seu alvedrio. O homem segurava o vinho triste, não havia o que fazer.

 
—Agora riem de mim quando lhes digo que Luc morreu uns meses depois, são estúpidos demais para entender que... Sim, não se ponha o senhor também a me olhar com esses olhos. Morreu uns meses depois, começou por uma espécie de bronquite, assim como a essa mesma idade eu tinha tido uma infecção hepática. A mim internaram no hospital, mas a mãe de Luc se empenhou em cuidá-lo em casa, e eu ia quase todos os dias, e às vezes levava meu sobrinho para que brincasse com Luc. Havia tanta miséria nessa casa que minhas visitas eram um consolo em todo sentido, a companhia para Luc, o pacote de arenques ou a torta de damascos. Acostumaram-se a que eu me encarregasse de comprar os medicamentos, depois que lhes falei de uma farmácia onde me faziam um desconto especial. Terminaram por me admitir como enfermeiro de Luc, e já imagina que numa casa como essa, onde o médico entra e sai sem maior interesse, ninguém repara muito se os sintomas finais coincidem de todo com o primeiro diagnóstico... Por que me olha assim? Eu disse algo que não esteja bem? 

 
Não, não tinha dito nada que não estivesse bem, sobretudo a essa altura do vinho. Muito pelo contrário, a menos que se imagine algo horrível a morte do pobre Luc vinha demonstrar que qualquer um dado à imaginação pode começar uma fantasia num ônibus 95 e terminá-la ao lado da cama onde está morrendo caladamente um menino. Para tranqüilizá-lo, o disse. Ficou olhando o ar um tempo antes de voltar a falar.

 
—Bom, como queira. A verdade é que nessas semanas depois do enterro senti por primeira vez algo que podia se parecer com a felicidade. Ainda ia de vez em quando visitar a mãe de Luc, levava um pacote de biscoitos, mas pouco me importava já ela ou a casa, estava como abnegado pela certeza maravilhosa de ser o primeiro mortal, de sentir que minha vida continuava se desgastando dia após dia, vinho após vinho, e que ao final acabaria em qualquer parte e a qualquer hora, repetindo até o fim o destino de algum desconhecido morto vá saber onde e quando; mas eu sim estaria morto de verdade, sem um Luc que entrasse na roda para repetir estupidamente uma estúpida vida. Compreenda essa plenitude, velho, inveje-me tanta felicidade enquanto durou.

 
Porque, ao que parece, não tinha durado. O bistrô e o vinho barato o provavam, e esses olhos onde brilhava uma febre que não era do corpo. E, entretanto, tinha vivido alguns meses saboreando cada momento de sua mediocridade cotidiana, de seu fracasso conjugal, de sua ruína aos cinqüenta anos, seguro de sua mortalidade inalienável. Uma tarde, cruzando o Luxemburgo, viu uma flor.

 
—Estava na beira de um canteiro, uma flor amarela qualquer. Tinha me detido para acender um cigarro e me distrai a olhá-la. Foi um pouco como se também a flor me olhasse, esses contatos, às vezes... O senhor sabe, qualquer um sente, isso a que chamam a beleza. Justamente isso, a flor era bela, era uma belíssima flor. E eu estava condenado, eu ia morrer um dia para sempre. A flor era linda, sempre haveria flores para os homens futuros. De um golpe compreendi o nada, isso que tinha acreditado ser a paz, o término da cadeia. Eu ia morrer e Luc já estava morto, não haveria nunca mais uma flor para alguém como nós, não haveria nada, não haveria absolutamente nada, e o nada era isso, que não houvesse nunca mais uma flor. O fósforo aceso abrasou meus dedos. Na praça saltei num ônibus que ia para qualquer lado e pus-me absurdamente a olhar, a olhar tudo o que se via na rua e tudo o que havia no ônibus. Quando chegamos ao término, desci e subi a outro ônibus que levava aos subúrbios. A tarde toda, até já entrada a noite, subi e desci dos ônibus pensando na flor e em Luc, procurando entre os passageiros alguém que se parecesse com Luc, alguém que se parecesse comigo ou com Luc, alguém que pudesse ser eu outra vez, alguém a quem olhar sabendo que era eu, e logo deixá-lo ir sem lhe dizer nada, quase protegendo-o para que seguisse por sua pobre vida estúpida, sua imbecil vida fracassada rumo a outra imbecil vida fracassada rumo a outra imbecil vida fracassada rumo a outra...

 
Paguei.