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ENTREVISTA com LUIS CAMILLO OSÓRIO

Dando continuidade à série de entrevistas iniciada na Número SETE, esta edição traz conversas com a historiadora da arte Glória Ferreira e o crítico Luiz Camillo Osório

 

Entrevista com Luiz Camillo Osório*

 

– Para começar, gostaríamos que você falasse sobre a sua formação e o que te levou a se dedicar à critica de arte.

LCO – Meu primeiro contato mais sério com arte se deu logo depois de me formar aqui na PUC-RJ, em economia, e viajar para Londres. Tinha acabado de completar 22 anos. Lá, fiz um diploma em história da arte, visitava quase diariamente os museus (que eram grátis) e ouvi muita música pop - isso entre 1985 e 1988. De volta ao Brasil, fui fazer mestrado e doutorado em filosofia (concluído em 1998), também na PUC, estudando com Eduardo Jardim (meu orientador), Katia Muricy, Antonio Abranches e Ronaldo Brito. Nunca quis me isolar na academia e assim que terminei meu mestrado já fiz uma primeira curadoria com artistas amigos. Em 1996, quando abriu o MAC de Niterói, fui trabalhar lá e fiz uma série de exposições com artistas convidados e com a coleção Satamini. Em 1998 comecei a escrever críticas para o jornal O Globo. Isto ajudou o meu texto, que foi ficando mais solto, conciso e até mesmo mais preciso. Sabemos das restrições à crítica jornalística hoje, mas ainda me parece um lugar a ser exercitado, pois sua dimensão pública ainda não foi substituída pelas mídias eletrônicas. O trânsito entre academia e meio de arte é o que mais me interessa. Além das leituras fundamentais (e heterodoxas) e do contato estreito com a produção de arte, minha formação não estaria completa sem o ateliê e a conversa com artistas amigos, o Maracanã e a música pop (do Lou Reed ao DJ Dolores).

 

– Você fala que uma obra de arte provoca uma sensação de suspensão, um arrebatamento, como isso se relaciona com uma racionalização necessária para a crítica?

 

LCO – De fato, o arrebatamento ou essa surpresa que constitui uma resposta mais contundente diante do trabalho é raríssimo. Não pode ser de outra maneira. Não vejo a racionalização, o exercício argumentativo, como uma domesticação desse arrebatamento inicial. Acho que a natureza do arrebatamento é a sua excepcionalidade e o esforço compreensivo não deve ser algo que o iniba, que o aprisione conceitualmente. O mais importante na crítica é tentar articular o que está sendo escrito e experimentado com a potencialização das obras e da própria vida.

 

 – A respeito da forma da escrita, qual seria o grau e os parâmetros de inventividade de um texto de critica de arte? O quanto é possível se desgarrar do objeto tratado e qual seria o limite desse deslocamento?

 

LCO – A questão é: como ser fiel à singularidade das obras, ao que elas têm de particular, e como repor isso em uma outra tonalidade afetiva que é a da escrita. Trata-se de uma espécie particular de tradução. Como se traduz a experiência da obra na experiência do texto? Walter Benjamin, em um ensaio sobre a tradução, privilegia o conhecimento (no sentido de vivência) da língua para a qual o texto é vertido. Isto renovaria a experiência da própria língua matricial do poema. No caso da crítica, ela deriva da obra, mas de certa maneira recria a obra. Isso é importante, dá um certo nível de criatividade à crítica. Mas é preciso estar sempre sintonizando essa criatividade para que ela não se descole da obra e vire um texto arbitrário. O importante é que a escrita não seja explicativa, mas exploratória.

 

 – E como você pensa a escrita da história?

 

LCO – Acho que no caso da história, tendo o cuidado de preservar a pregnância dos acontecimentos, o que interessa na escrita é a reconfiguração de genealogias, a redescoberta de genealogias, levando em consideração sempre o presente. Mas pensando em que medida este presente influencia e é influenciado pelo passado e abre possibilidades em relação ao futuro. Acho interessante o modo como T.S. Eliot pensa as relações de influência: não como uma linha de mão única, por exemplo, de Cézanne para Picasso. Na direção inversa também há uma relação de influência, na medida em que as obras se apresentam a partir de modos de ver, sentir e pensar atuais. Os acontecimentos estão sempre se reprocessando com o andamento da própria história. Eu quero afirmar essa efetividade dos acontecimentos (e das obras), até para politicamente não cair nesse risco que é abrir mão do fato e tornar a história pura argumentação interpretativa.

 

 – Como você pensa a questão da identidade cultural brasileira?

 

LCO – Essa é uma discussão difícil e que me interessa. Tem uma entrevista do Guimarães Rosa, em que perguntam a ele sobre essa questão de uma identidade cultural, de uma brasilidade, e ele dá uma resposta usando um conceito em alemão! A brasilidade para ele seria uma " fala inefável", como aquilo que se mostra e se vela ao mesmo tempo. Essa noção de brasilidade é extremamente problemática, mas eu ainda prefiro enfrentar os riscos dessa questão, do que abrir mão dela. Enfim, sem forçar muito a barra, mas forçando, quero pensar em que medida há uma experimentação civilizatória brasileira, que é, inclusive, a meu ver, muito corporal, de um "DNA delirante" que estamos produzindo há 5 séculos. Se formos pensar a crise do projeto iluminista, vivida de maneira radical depois do 11-09, a nossa não-assimilação integral do moderno ganhou uma dose de positividade. O que sempre foi um problema se tornou uma possibilidade. Nós não somos o outro e não somos o mesmo – somos o outro e o mesmo. E essa discussão, que é sempre uma discussão um pouco diluída teoricamente, que é a do multiculturalismo, nos traz certas vantagens comparativas. Ela nos é originária, não é apropriada por nós; ela é a nossa matriz. Então, se há um momento histórico em que esse nosso não-lugar pode se constituir em um sinal de renovação civilizatória é agora. Entre os fanatismos e as intolerâncias, que se reinvente nossa "complicada cordialidade".

A discussão que parece hoje novidade na Europa, de uma Estética Relacional, é parte de nossa teoria social desde Gilberto Freire e Sergio Buarque.  A questão da troca cultural é uma questão muito recente para os europeus do norte e, para o bem e para o mal, com todas as loucuras e opressões da nossa colonização, uma coisa o português fez em sua perversão: ele se misturou. O que não quer dizer que não sejamos um país racista, claro que somos. Agora, há um corpo singular que se inventa nesse país, que é indefinível, que é absolutamente confuso e absolutamente experimental. Essa é nossa origem, é o nosso destino, esses são os nossos problemas e essa é nossa esperança.

 

Como essa especificidade cultural pode se constituir formalmente?

 

LCO – Eu acho que não tem um único modo, uma fórmula brasileira, mas há uma possibilidade de perceber processos formais que se vinculam a um processo de constituição cultural. Um certo inacabamento, uma certa fragmentação, uma certa precariedade... Ao mesmo tempo há o rigor próprio disso. O rigor não é um critério objetivo a ser aplicado como um metro. Ele se universaliza pelo singular. No João Gilberto, por exemplo, tudo é rigor e tudo é despojamento. O Brasil tem também essa especificidade da absorção e reapropriação cultural, é muito nítido como o estrangeiro se integra facilmente, justamente por conta da nossa não-essencialidade de origem. Por isso, como dizia o Pedrosa, estamos condenados ao moderno. Então acho que esses vários processos formais podem ser identificados em várias poéticas, mais que em uma "forma brasileira".

 

Como você vê a "internacionalização da arte brasileira" que toma corpo no começo dos anos 90?

 

LCO – A mencionada internacionalização veio por conta de valores de mercado, de uma necessidade do mercado por uma arte "diferente", então brota essa leitura sempre carnavalizante do Brasil que é cheia de distorções e problemas. Por isso, temos que fortalecer a inserção internacional da crítica e da história da arte produzidas aqui. Um texto como a Teoria do Não-objeto do Ferreira Gullar, pode ser colocado na discussão da história da arte daquele momento. Cabe a nós constituir os parâmetros, as razões e os sentidos da nossa própria arte. Sou otimista neste aspecto, melhoramos a discussão universitária, temos publicado uma boa quantidade de livros e nossos museus têm fortalecido seu trabalho educativo. Falta uma revista de cultura e melhor distribuição da crítica universitária.

 

* Entrevista concedida ao grupo de críticos do Centro Universitário Maria Antonia em 2004