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PENSANDO COM DANTO, por José Bento Ferreira

Pensando com Danto


Depois de seguidos dias de pregação, Jesus partiu para uma “alta montanha” com Pedro, Tiago e João, “para rezar”. Diante deles, “transfigurou-se”, o rosto “brilhou como o sol” e “alterou-se”, as vestes ficaram “claras como a luz”, ou “brancas como a neve”. Os três viram o “mestre” conversar com Moisés e Elias, que “apareceram na claridade”, viram com espanto a nuvem que os turvou e ouviram a voz que veio dela. A partir da analogia da Transfiguração, o filósofo e crítico de arte Arthur C. Danto procura explicar como o mundo da arte pode ungir objetos materialmente idênticos a meras coisas. A Transfiguração do Lugar-Comum refina a teoria institucional por meio da analogia religiosa, signo da “metáfora interna” de toda obra de arte. A tarefa da crítica não é adotar qualquer objeto para que se apresente no art world, mas assegurar a transmissão do “poder da metáfora”.

Danto escreveu com a intenção de provocar impacto no mundo da arte. Irônicas fabulações criticam os “curadores de um musée imaginaire” que seriam “pessoas institucionalmente autorizadas” a decidir sobre o status de obra de arte de quaisquer objetos, assim como os “bárbaros” que apenas apreciam as “contrapartes materiais”. Os pintores expressionistas abstratos “andavam metidos em roupas tão respingadas de tinta que elas próprias eram uma declaração da intimidade do artista com sua obra”. A idéia de que o traço distintivo das obras de arte fosse a “Forma Significativa” não ajuda a distinguir uma obra de arte materialmente idêntica a coisas reais (como o urinol de Duchamp e as caixas de sabão em pó Brillo, de Warhol). Tampouco uma teoria da expressão resiste às análises de Danto, pois pressupõe que a diferença entre obras de arte e “meras representações” seria restrita aos conteúdos e que as primeiras simplesmente possuiriam um conteúdo um pouco mais rico, quando o objetivo de uma investigação filosófica deve se referir à distinção ontológica entre arte e não-arte. Isto é, o urinol exposto é uma coisa de natureza diferente daqueles que se encontram “à disposição dos cavalheiros”. Eis o xis da questão.

Mas aquele que Danto considera seu “principal livro sobre o assunto” também pode ser lido como um ensaio filosófico em que a arte, the subject, transfigura a filosofia. O autor confidencia, no prefácio, que A Transfiguração do Lugar-Comum deveria se chamar “filosofia analítica da arte” e seria o quarto volume de um sistema filosófico. A analogia religiosa da transfiguração e a idéia de “fim da arte” foram inspiradas pelo pensamento de Hegel, não de todo um autor caro aos que se dedicam à “filosofia analítica”. E assim como, segundo Danto, “a Fenomenologia do Espírito tem a forma de um romance de formação em que o herói, Geist, atravessa uma série de estágios a fim de obter conhecimento”, também A Transfiguração do Lugar-Comum presta-se a uma analogia literária, tendo a arte como musa e o filósofo, aquele que depara infernais problemas filosóficos na busca por fulgurações de sua Beatriz. Além da obra do quase-homônimo que Danto não se atreveu a mencionar, seu livro também se espelha em Jacques, le Fataliste et son Maître, genial romance filosófico de Diderot, o pensador iluminista que escreveu sobre as pinturas dos Salões e de certa forma inventou a crítica de arte. Jacques é um pícaro quixotesco, obstinado em provar ao “amo”, este uma espécie de aio e preceptor, que o determinismo não suprime a liberdade, isto é, que justamente porque tudo o que acontece está prescrito no “Grande Livro lá de cima”, tudo é permitido e de nada valem as deliberações individuais. No livro de Danto, o intrépido “J” faz as vezes de Jacques e desafia o determinismo da História com sua arte autoconsciente.

            Mais do que um livro de teoria da arte, Danto conseguiu escrever um romance filosófico pós-histórico (depois do fim da filosofia). O romance tem personagens admiráveis, como Narciso, Sócrates, Warhol. Cenas marcantes, como a disputa entre os geniosos J e K. Há mesmo um momento da mais cinematográfica ficção-científica em que se trata de como certos objetos e obras de arte teriam sido vistos em diversas épocas, à luz do pensamento de Wöllflin de que “nem tudo é possível em qualquer momento”. Inesquecível é a passagem em que uma intérprete de Fedra sai das páginas de Proust para contracenar com Elliot Gould, o astro de Mash. Mas com certeza as personagens principais são o casal central “arte” e “filosofia”, seus desentendimentos, sua profunda (romântica?) identidade e suas histórias ao longo da História: de acordo com Danto, a arte é “algo que contrasta com a realidade” e a filosofia surge em determinadas culturas, “sobretudo na Grécia e na Índia”, a partir de um “conceito de realidade”.

Se a questão sobre a distinção entre obras de arte e meras coisas aponta para a teoria da arte, outra questão norteia A Transfiguração do Lugar-Comum e diz respeito à reflexão filosófica: “por que a arte faz parte das coisas sobre as quais pode haver uma filosofia?” A resposta a essa pergunta passa pelos diversos modos como a arte pode contrastar com a realidade e como a filosofia pode formular a idéia de realidade. Essa milenar relação de amor e ódio não é apenas o tema do livro de Danto, ele a encarna em sua forma e em sua linguagem. Por isso não é preciso tomar ao pé da letra a idéia de que a História da Arte acaba quando Andy Warhol apresenta objetos materialmente idênticos a “meras coisas reais”, mas que no entanto são (do ponto de vista ontológico, quanto ao ser) absolutamente diferentes daquelas coisas, uma vez que umas são obras de arte e outras não. Não é preciso concordar com Danto que as caixas de Brillo teriam o mesmo poder transfigurador que tornou claras as vestes de Jesus, por oposição às “roupas respingadas” pelas “mangueiras enlouquecidas”  dos nova-iorquinos, para os quais a pintura é “pura tinta e nada mais”. Pois o que está em jogo não é apenas a transfiguração da realidade, mas também a transfiguração da idéia de realidade que a arte opera como “objeto filosófico por natureza”.

O romance filosófico de Danto tem um final mais surpreendente do que o previsível Metrópole 80, uma das suas obras imaginárias. A cena de amor entre filosofia e arte, uma análise da linguagem metafórica, conclui que “as metáforas são pequenas obras de arte”. A partir do momento em que o filósofo se dá conta disso, todos os falantes transfiguram-se em artistas, no mesmo sentido em que, a partir da Brillo Box, todos os artistas autoconscientes convertem-se em filósofos, uma vez que essa metáfora específica “traz à luz da consciência as estruturas da arte”. Então todos são artistas e filósofos ao mesmo tempo e isto pode ser interpretado tanto como uma apoteose triunfal quanto como um final trágico à maneira de Romeu e Julieta.

Aliás, segundo a idéia de “resistência à substituição”, quando Romeu diz que “Julieta é o Sol”, o predicado de pureza luminosa diz respeito a Julieta, não ao Sol, pois “é falso dizer que Julieta é um corpo formado por gases quentes que ocupa o centro do sistema solar”. Essa idéia elimina a discursividade da metáfora, torna-a plástica, literalmente figura de linguagem. Além disso, contribui para o historicismo, pois se “compreender a obra de arte significa entender a metáfora que ela sempre contém” e a metáfora é uma espécie de ilustração que explicita certos predicados sem nada lhes acrescentar, então para que a metáfora permaneça viva é preciso restituir o seu contexto. De fato, a cômica análise da Queda de Ícaro sustenta que certas obras de arte seriam outras sem determinadas informações, no caso o título. Por isso Danto insiste em relativizar a recomendação de “prestar atenção na obra em si”.

Mas quem aprecia a fala de Romeu não retrocede “à época de Shakespeare”, quando não se sabia de manchas solares, como se isso impedisse o leitor moderno de entender a metáfora da pureza. Metáforas solares desde Platão são perfeitamente claras e quem sai ao sol para um passeio não o observa cosmograficamente como um astrofísico, nem mesmo os astrofísicos, creio eu. E a própria observação cosmográfica pode ser metafórica no sentido de Danto, como no poema Satélite, de Manuel Bandeira, sobre uma lua “desmetaforizada”. A resistência à substituição é discutível, pois novas maneiras de ver as coisas podem proporcionar novas maneiras de ver as obras de arte. Por vezes as mudanças culturais podem fazer com que as metáforas percam sua força. Mas também é possível que essas mudanças a amplifiquem, como diz Husserl sobre a Nona Sinfonia de Beethoven, ao adquirir um novo sentido a cada momento, uma obra de arte acumula rastros de sentidos, para além da metáfora.

                                                                                                                                                            José Bento Ferreira



A Transfiguração do Lugar-Comum

Arthur C. Danto
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