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É NO MEU OLHO QUE O MUNDO DIMINUI, por Orlando Maneschy

É no meu olho que o mundo diminui*


            A velocidade da vida contemporânea nos conclama, a todo instante, a dar conta de um ritmo que há muito aponta para experiências de desterritorialização em que as redes impõem seu poder como forma necessária para a inserção do indivíduo no mundo, globalizado, neoliberal, capitalista. No campo da cultura a imagem é um dos mais antigos meios utilizados para estabelecer vínculo e produzir sentido. Entender o ambiente em que se está inserido, relacionar experiências vividas ou sonhadas, representar, imitar, remeter a algo, construir uma idéia... em todos estes processos a imagem se apresenta, de uma forma ou de outra, como estratégia de vinculação.

            É neste fluxo - dos hominídeos até a contemporaneidade das imagens de origem numérica (que podem ser captadas em qualquer lugar, enviadas por e-mail, infravermelho ou mensagem de um celular)  - que tentamos apreender a imagem e sua potência. A imagem, de forma de representação de uma dada realidade ao seu estabelecimento enquanto linguagem, em campos diversos de utilização fotográfica, inclusive no território da arte. Buscamos perceber certos espaços nos quais bordas encontram-se mais diluídas, adentrando em questões que tangem noções como a de mímesis e do fotográfico para observar alguns procedimentos da imagem hoje, oscilando entre limites temporais e territoriais, entre informações e artistas muito ou pouco conhecidos, na busca de construção de sentido. A produção visual se desenvolve no território de mediação entre real e imaginário, nesta zona intermediária a cultura vem elaborando seus mecanismos.

            A busca de uma aproximação do real (HOCKNEY, 2001 e STEADMAN, 2001) possibilitou a criação de diversas técnicas e o emprego de aparatos ópticos por parte dos artistas, como demonstra a história da fotografia, pois mesmo que ela busque reproduzir de maneira fiel a realidade, tal intuito é uma falácia, já que ela é incapaz de dar conta de tal tarefa.

Se tomarmos a fotografia como ponto de questionamento inicial, perceberemos que, em seus primeiros anos, ela oscilava entre linguagem e mero aparato de referência, suscitando debates calorosos (FONTCUBERTA, 2003) envolvendo de artistas, cientistas e críticos (como Talbot, Demanchi, Strand, Dali) sobre o estatuto da fotografia, tentando chegar a um denominador comum acerca do seu lugar. A ameaça de não encontrar “o lugar” foi a vantagem que a levou a ocupar diversos espaços, aproximando-se da pintura, com o pictorialismo, do “real”, com a straight photography, sendo empregada em diversos movimentos, processos, experiências, da documentação à arte.

            Cabe enfatizar que mesmo em utilizações mais “objetivas”, com uma “fotografia aplicada”, como é o caso da moda ou da fotografia documental, há sempre um sujeito que olha, elege, constrói um recorte, selecionando o que será visto e o que está fora de quadro, empregando determinada câmera, tipo de filme, programa etc. Mesmo constituída de um discurso imparcial, ela incorpora uma escolha, e esta perspectiva da imagem fotográfica não pode deixar de ser considerada.

            As especificidades da imagem fotográfica, em seu estatuto, já possuem grande complexidade, por deter, enquanto objeto significante, relação com noções de realidade e articular uma potencialidade de replicação dos objetos do real. Esta simulação bidimensionalizada encontra campos de utilizações, amplos, chegando a momentos em que o próprio estatuto fotográfico passa a ser objeto de indagação.

            Nesta perspectiva a criação se impõe, com o surgimento de imagens que se dão dentro de outra territorialidade que, a partir das vanguardas do início do século XX, passam a engendrar propostas subversivas ao olhar. Vale citar algumas imagens, como a da fotografia Piston de courant d’air, de Marcel Duchamp, de 1914, tida como referência para o Grande Vidro (La marriée mise à nu par sés célibataires, même), 1915-1923, obra fundamental, que aponta, dentre outras direções, para uma experiência universal relacionada ao tempo, como sensivelmente percebeu Rosalind Krauss (2002). Piston de courant d’air é parte de um processo criativo que vai gerar a obra-sistema, o Grande Vidro, e imagem com significado próprio. A possibilidade que esta fotografia detém, de ser, elemento sígnico em si e ainda indicar o percurso de outra obra, ultrapassa os limites da própria imagem-objeto, para ampliar seus significados. Se nos detivermos para observar, da primeira Fonte, 1917, o que resta é a fotografia de Stieglitz, publicada em The Blind Man nº 2 no mesmo ano, e cópias desse objeto, já que o primeiro foi dado como perdido. Ao relacionarmos esse fato à entrevista concedida a Stieglitz (1922) por Duchamp, em 1922, em que este afirma que esperava que a fotografia fizesse com que as pessoas perdessem o interesse na pintura até que alguma outra coisa a tornasse insuportável, constatamos que o princípio da reprodutibilidade (Benjamin, 1993) já estava aí, na imagem, no objeto, na mente do artista. A aura não existia.  

É impossível deixar de citar a idéia de “imaterial”, proposta por Yves Klein, com sua exposição O Vazio, 1958, que pintou de branco o interior da Galeria Iris Clert, em Paris, após retirar o mobiliário, a fim de obter toda a intensidade luminosa. Ela nos remete imediatamente a White Cue, 1999, de Rubens Mano, que pinta de branco o subsolo de um restaurante no Rio de Janeiro, revelando através da sobreposição da tinta sobre a poeira e o espaço uma suspensão temporal, através das camadas presentes no intervalo inscrito no lugar. Podemos observar, dentro da mesma chave da temporalidade relacionada à imagem, ao espaço e à luminosidade, a obra de Lúcia Gomes, Mênstruo Mostra Monstro Mostarda, 2006, realizada no Dia Internacional da Mulher, em que a artista tinge de vermelho um canal localizado no centro da cidade de Belém, numa das áreas de maior especulação imobiliária. Na obra política da artista, em homenagem à missionária norte-americana assassinada Dorothy Stang, Gomes adentra o canal e o tinge de vermelho china, no final da tarde. A cor vai ocupando o espaço resultando numa cena de grande dramaticidade plástica, com imagens de luminosidade vibrante da artista dentro da vala, e do vermelho espalhado ao longo do canal. Em todos esses casos, a foto documento vira também parte da obra.

            Em outros momentos, acervos visuais são acionados e transpostos ao universo da arte, como em Panorama, 2001, de Carla Zaccagnini, em que vistas aéreas do acervo do Museu da Aeronáutica da Fundação Santos Dumont - MAFSD - são restauradas e trazidas ao MAM para dar visibilidade a uma situação de disputa política no meio cultural paulista pelo usufruto do prédio da OCA, no Ibirapuera, então ocupado pelo MAFSD. Zaccagnini, dispondo este conjunto de imagens e abrindo uma janela na parede, entre as fotografias, dá a ver o prédio disputado, revelando a complexidade do interior de um embate calcado em imagens de poder.

Também articulando a noção de paisagem, Sinval Garcia cria imagens manipuladas em laboratório, na obra Paisagens In-memória, 2001, “pinta” com produtos químicos sobre o papel fotográfico, realizando após esse procedimento, uma pesquisa iconográfica e cartográfica para localizar em qual lugar se encontra a origem dessa imagem. O artista estabelece uma outra política do espaço, além de se posicionar exatamente na fronteira entre fotografia e pintura, já que suas imagens são fotografias, mas constituídas dentro de um lastro da pintura.

            Estes são alguns exemplos de operações utilizadas por artistas em que a imagem, tanto por sua relação com o referente, quanto por um princípio mais conceitual, ultrapassam limites da materialidade, conceito, e repertório visual. E ora, nem tempo, nem espaço, variáveis relacionadas à fotografia, permitem ir além na construção deste texto, já que, a cada momento, há mais lugares sendo ocupados e permeados por imagens.

E aqui fica uma dica, um rastro, uma imagem em forma de lista. São percursos, visões, travessias, proposições, imagens, possibilidades: Hugo Ball, George Grosz, Geraldo de Barros, Gratuliano Bibas, Andy Warhol, Joseph Kosuth, Harold Szeemann, Vilém Flusser, Dennis Oppenheim, Robert Capa, Robert Smithson, Naum Jum Paik, Helmut Newton, Bruce Nauman, Alair Gomes, Hélio Oiticica, Antônio Manuel, Ligia Clark, Arthur Danto, Cindy Sherman, Ricardo Basbaum, Oriana Duarte, Rosângela Rennó, Edson Barrus, Cláudia Leão, Rafael Assef, Keith Richard ... 

                                                                                                                                            Orlando Maneschy 

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*Do poema "Pequeno (a) 2.Eczema" in: QUINTANE, Nathalie. Começo [autobiografia]. São Paulo: 2004, Cosac Naify.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Volume I. São Paulo: 1993, Editora Brasiliense, pp. 165-196.

FONTCUBERTA, Joan (org.). Estética fotográfica – una selección de textos. Barcelona: 2003, Editorial Gustavo Gili, SA.

 
HOCKNEY, David. O conhecimento secreto – redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: 2001, CosacNaify.

 
KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: 202, Editorial Gustavo Gili, SA. pp. 76-93.

 
STEADMAN, Philip. Vermeer’s camera: the truth behind the masterpieces. Oxford: 2001, Oxford University Press.

 
STIEGLITZ, Alfred. Can a photograph have the significance of art?  Manuscripts, nº4,1922.