Você está aqui: Página Inicial / Rede / Revista Número / numero Três / EDITORIAL TRÊS

EDITORIAL TRÊS

Qual o sentido e o alcance que a escrita sobre a arte pode ter?  Qual a posição do texto dentro de um sistema cultural cujas relações de poder muitas vezes sobrepujam as tentativas de esclarecimento? Tais questões são inerentes a qualquer projeto editorial, como é o caso da revista número, cujo objetivo é promover um local de divulgação de textos sobre arte como alternativa aos já existentes. Contudo, como qualquer projeto, o caminho configura-se sempre mais opaco do que o objetivo inicial. Nesses últimos meses, tanto os encontros entre o corpo editorial para discussão de textos e balanço das edições anteriores, como críticas externas salutares levaram-nos inevitavelmente à pergunta sobre o estatuto daquilo que estava sendo produzido e publicado. Como se posicionar diante de formas estabelecidas de discurso sobre artes visuais?

A fim de trazer à tona um pouco das perplexidades e prazeres implícitos em um trabalho de escrita que se propõe permear um objeto cuja experiência na maior parte das vezes não se deixa fixar em toda sua complexidade por palavras ou por um único tipo de discurso, escolhemos nesta número explorar algumas das diversas vias de troca entre ARTE – PALAVRA. Sabemos, por um lado, que as disciplinas “tradicionais” de reflexão sobre a arte (Estética e Filosofia da Arte, Teoria e História da Arte) passaram por revisões desde o advento da arte moderna. Para alguns, já teriam perdido sua validade histórica. No que diz respeito à Crítica, tendo nascido num momento de constituição da esfera pública burguesa e democrática com o Iluminismo no séc. XVIII, o conflito não é menos profundo. Seu poder cognitivo e seu papel de mediadora entre a arte e a sociedade são constantemente questionados pelas modificações na esfera pública, da qual depende para se efetivar como tal. Diante da atual configuração dos fatos, torna-se necessário repensar seus objetivos. Além disso, nas últimas décadas, outras formas de abordagem surgiram, transformando-se rapidamente em áreas de especialização: a Curadoria e o Jornalismo Cultural.

Por outro lado, muito da crise de legitimidade dessas formas de escrita sobre a arte decorre, se não completamente no mais das vezes, de transformações ocorridas na própria esfera artística. Uma das características da arte no século XX é o rompimento com a distinção tradicional entre texto e imagem. Artistas como Picasso, Klee, Magritte, Duchamp, Jasper Johns, entre outros, chamaram a atenção para o estatuto representacional comum a ambos. Neste momento, a palavra escrita passa a participar da obra como um elemento significativo da representação visual (traçadas no seu interior, em colagens ou como título), às vezes de modo irônico e até desconstrutivo.

         Paralelamente, os textos de artista passam a ter uma importância ímpar, seja como teoria reflexiva sobre o próprio trabalho ou sobre o sentido da arte em geral, seja como registro de experiências efêmeras ou a palavra impressa como um meio em si, questionando os complexos relacionamentos entre a mensagem da arte e seu modo de apresentação. Por meio de manifestos, os artistas também pensam o seu lugar na história, muitas vezes propondo uma nova maneira de ver e contar a História da Arte. Claro que o lado negativo dessa valorização ocorre quando a fecunda relação arte-linguagem dá lugar à literalização pura e simples. 

Tendo em vista esse vasto horizonte, configurou-se a presente edição. Cristiana Tejo e Tiago Mesquita escrevem, respectivamente, sobre Jornalismo Cultural e História/Crítica de arte no Brasil hoje. Por sua vez, a crescente procura dos artistas por um espaço de reflexão na Universidade, escrevendo monografias e teses sobre seu próprio trabalho, levou Tatiana Ferraz a analisar, a partir de enquete realizada com artistas e professores, os pressupostos e as conseqüências dessa nova situação. José Augusto Ribeiro problematiza as propostas contemporâneas de curadoria como trabalho de arte e de arte como texto. Fiel à intenção de publicar, regularmente, uma crítica sobre exposições recentes ou em cartaz, Guy Amado escreve sobre a última edição do Panorama da Arte Brasileira, ocorrida no MAM, em São Paulo. Sem estar de modo explícito ligado ao mote da revista, seu texto certamente converge para questões levantadas nos outros artigos.

Falando de arte e escrita, não poderíamos deixar de incluir trabalhos nos quais o texto ou a palavra aparece como um dado fundamental do fazer artístico. Daniela Labra comenta algumas experiências atuais neste sentido. Desde o início, a vontade era publicar também os próprios trabalhos. Agradecemos a todos que enviaram propostas; selecioná-las e discuti-las com certeza ajudou, e muito, a ampliar a idéia inicial da qual partimos. Infelizmente, o espaço é reduzido, e só pudemos escolher três: Fernando Burjato, Ricardo Basbaum e Rosana Ricalde. Por seu turno, a intervenção, como artista convidado, de Jorge Menna Barreto aposta no sentido político da arte e da palavra na arte. Por fim, o conto inédito de Tatiana Blass sinaliza aquele outro universo onde ocorrem frutíferos intercâmbios entre experiência plástica e a escrita: a literatura. 

Terminada a Três, o balanço é de que as questões primeiras devem permanecer sempre no horizonte, pois se o reconhecimento de uma situação complexa não nos permite falar ingenuamente em “escrita inovadora sobre artes visuais”, o mesmo nos obriga à vigília incessante a cada elaboração e discussão de uma nova edição.    

 

As Editoras