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ARTE E UNIVERSIDADE: novas estratégias de reflexão, por Juliana Monachesi e Tatiana Ferraz

Arte e Universidade: novas estratégias de reflexão

 

“Ser um artista hoje significa questionar a natureza da arte”, afirmou Joseph Kosuth em texto de 1969. Referia-se ao questionamento por meio da obra, assim como do discurso sobre ela. Hoje é consenso que a reflexão sobre o próprio trabalho é obrigação central para o artista. “Perdemos a ilusão da transparência do trabalho de arte. Cada vez mais o artista é chamado a falar sobre a sua produção, pois a mesma, sozinha, parece não ser mais suficiente para dar conta da complexidade do pensamento envolvido”, afirma o artista Jorge Menna Barreto.

Poderíamos citar o surgimento, nos últimos anos, de inúmeros espaços, materiais e imateriais, propícios ao desenvolvimento desta reflexão, como grupos independentes, galerias autogeridas, incluindo a produção de textos de artistas, mas o que chama a atenção aqui é a recente configuração de um espaço dentro da universidade. A nova instância de debate e troca se deve à implantação da linha de pesquisa em “poéticas visuais”[1] no programa de pós-graduação dos departamentos de artes plásticas (que possibilita ao artista desenvolver uma pesquisa nas instâncias de mestrado e doutorado sobre o próprio trabalho).

Por meio de enquete enviada a diversos artistas, críticos e professores universitários que atuam em São Paulo, recolhemos depoimentos que discutem as implicações dessa linha de pesquisa e o que se espera desse novo lugar na universidade. Segundo o artista e professor Carlos Fajardo, “o embate teórico do artista, isto é, o artista refletir sobre a arte do seu tempo, é algo que começou a ocorrer a partir dos anos 60, principalmente nos Estados Unidos”. Tal sintoma possivelmente se deve ao fato de, desde os anos 50, a maior parte dos artistas americanos ter sido formada na academia. No caso do Brasil, o fenômeno é mais recente, manifestando-se uma década depois. Para o professor da ECA/USP, “boa parte da nossa fortuna crítica foi produzida pelo artista” [2], o que anularia a pertinência de qualquer discussão sobre o artista ser ou não capaz de produzir textos sobre sua obra.

Opinião similar tem o artista Marco Giannotti, que também exerce atividades docentes, quando busca esclarecer uma série de preconceitos quanto à pertinência de uma área de concentração na prática artística: “Em primeiro lugar, a atividade artística e a universitária são atividades distintas, mas compatíveis. A pós-graduação em poéticas visuais foi uma das grandes conquistas do departamento de artes plásticas da USP, devido ao empenho da Regina Silveira, e acaba de uma vez por todas com esta mística de que um artista não pode realizar uma atividade intelectual, reflexiva, concomitante a sua produção”.

Mario Ramiro, artista que também leciona na universidade, concorda e arrisca dizer que “o aumento do número de artistas profissionais nas universidades reflete não só uma suposta insustentabilidade econômica do profissional apenas vinculado ao mercado de arte, como também o abandono de um preconceito, ainda recente, de que ‘artista que é artista’ não escreve e não faz outra coisa que não seja o seu trabalho”.

Já o historiador e ex-diretor do MAC/USP José Teixeira Coelho lança uma questão mais abrangente e própria do contexto brasileiro: “as poéticas visuais ainda precisam de muito espaço institucional de afirmação e seria nada mais do que natural que um território lhes seja aberto e assegurado na pós-graduação”. A constatação da fragilidade dos escassos espaços institucionais no Brasil, que propiciam convivência e debate é, talvez, uma das chaves para se entender a grande procura do mestrado em poéticas visuais por artistas, principalmente por vislumbrarem ali um novo ambiente de reflexão, que é um espaço coletivo por excelência, raramente encontrado em outro contexto.

À tal procura correspondem dois pontos de vista distintos originais: apesar do senso comum antever a pós-graduação em artes plásticas com vistas à docência, ela também tem sido amplamente procurada por artistas que percebem um lugar possível de discussão e troca. Segundo Teixeira, o motivo de alguns artistas procurarem a academia sem necessariamente ter como objetivo a atividade docente é porque “vêem nela um fórum de discussão e convivência, dois aspectos fundamentais para o exercício da arte”. A artista e mestre pelo IA/UNESP Raquel Garbelotti concorda, mas pondera: “Não penso que este seja o único lugar possível para tal reflexão, mas a academia tem se tornado um espaço de troca e difusão do trabalho, para além da titulação”. Menna Barreto vai além, ressaltando que a universidade se configura como um “ambiente fértil para intersecções de outras instâncias do conhecimento”, e “ferramenta útil na articulação de diferentes conceitos envolvidos na prática artística“.

            Apesar da tendência em considerar a pós-graduação como foco atrativo de deliberação e troca, Fajardo entende que o novo “uso” da prática acadêmica se deve à má qualidade do ensino em geral e pontua a especificidade que esse lugar de pesquisa dentro da universidade tem, voltado à atividade docente. Segundo ele, haveriam outros lugares possíveis de troca que não a pós-graduação: “pode-se fazer grupos de estudo, grupos de debate. Confundir a carreira que a pessoa quer fazer com aquisição de conhecimento na área é confundir carro de corrida com carro esporte. (...) O objeto final está muito claro, é se tornar um acadêmico e ensinar na escola”.

Falar em poéticas visuais implica em sanar alguns preconceitos acerca da elaboração de um ensaio que trate da própria produção artística. Para tanto, Ramiro tenta esclarecer que “o trabalho de pesquisa de um artista em torno de sua produção não precisa necessariamente ser encarado como um monólogo do ego com sua obra. A tentativa de mapeamento e formulação das idéias e conceitos que estruturam um trabalho de arte, além das inúmeras relações que só mesmo o seu criador poderia nos revelar, deveria ser vista como uma contribuição ao trabalho de pesquisa em artes”. Fajardo reforça que há um equívoco, reconsiderando o caráter próprio da arte: “Se há uma característica da arte contemporânea é o solipsismo. Não é que o artista dentro da universidade vai ser um solipsista de carteirinha, mas a arte é uma reflexão sobre a sua própria natureza. Esse lugar que parece um nódulo muito apertado, pelo contrário, é uma expansão muito grande dos procedimentos artísticos”.

Além disso, muitos artistas entendem o ato reflexivo da produção textual sobre os seus trabalhos como ação inerente à prática artística. É o caso de Garbelotti, quando redefine o lugar do texto como uma dimensão do próprio trabalho. “Pode ser comum pensar no espaço do texto em poéticas como o da tentativa de tradução ou compreensão da ‘imagem’, mas prefiro pensá-lo como documento da ação reflexiva, talvez como uma instância do trabalho prático.”

Na opinião de Jorge, o fato tem relação com as novas estratégias de mediação na arte contemporânea: “O objeto de arte mostra a sua limitação para dar conta de toda a malha de reflexão da arte contemporânea. O artista passa a ocupar um papel ativo e presente na reflexão artística e busca outras áreas de atuação. A sala de aula também pode tornar-se um ambiente de ativismo cultural e político exercido pelo artista”.

A artista Carla Zaccagnini, atualmente cursando mestrado em poéticas na ECA/USP, também manifesta seu ponto de vista a respeito das perspectivas do trabalho textual do artista sobre sua produção: “Acho que escrever sobre seus procedimentos e conceitos, deter-se a analisar seu pensamento e seus processos, é uma maneira de o artista contribuir com novos conhecimentos sobre a arte brasileira. Talvez o problema seja pensar a história como algo que necessariamente se refere ao passado; a história é construída todos os dias. Acho que as pesquisas realizadas hoje pelos artistas podem constituir um conjunto de documentos do maior interesse para o entendimento da produção atual pelas futuras gerações”.

Pensar o trabalho dentro das prerrogativas da academia pode ser, entretanto, um problema, e muitos artistas concordam que um formato mais “adequado” para aqueles que gostariam de realizar um projeto de pesquisa ainda está por ser criado. Para Ramiro, “a procura dessa outra forma é um trabalho no qual todos têm a obrigação de se engajar. Sabe-se que muitos artistas de talento encontram grandes dificuldades na elaboração de um projeto, na determinação de sua linha de pesquisa, na formulação de seu discurso, de sua ‘tese’. E o inverso também ocorre. Muitos trabalhos que só parecem ser artísticos são defendidos e apresentados por meio de uma retórica que satisfaz as tais prerrogativas, mas que não contribuem efetivamente com a criação”.

Teixeira Coelho defende que um programa de pós-graduação deve ser equilibrado e diversificado: “O primeiro princípio da pesquisa é que ela é livre e essa liberdade deve ser assegurada sempre e em todas as situações para garantir a diversidade”, além de alertar para o equívoco “desastroso” de se cobrar que as pesquisas dêem conta de lacunas da historiografia brasileira. Ilustrando tal situação, Fajardo recorre ao exemplo da Universidade de São Paulo: “sua tradição advém das universidades francesas e alemãs, e o que ocorre é que estas são formações cientificistas que não correspondem à introdução do ensino de arte na universidade”. E reitera: “Cabe pôr em dúvida se deve haver o ensino de arte nos moldes do resto; e, aceitando-se os moldes atuais, o que se pode fazer para que a linha de pesquisa em poéticas visuais não seja confundida com a crítica historiográfica.”

Segundo a artista e mestre em Artes pelo IA/UNICAMP, Renata Lucas, existe uma “necessidade de flexibilização dos preceitos acadêmicos para reintegrar o artista”. O fato é que os novos procedimentos artísticos têm considerado a prática e a reflexão no universo das artes visuais não mais como algo isolado, dentro dos ateliês, mas como ações que se alimentam de uma coletividade, que vem sendo assegurada em várias instâncias de caráter público. Pensar a arte sob o viés de uma pesquisa acadêmica deve significar, a partir daí, uma dilatação dos modelos científicos: diferentemente da pesquisa que implica no acerto e no erro, algo que cabe à ciência, a arte não tem objeto definido; e como tal, lida com instâncias mais próximas ao processo, relacional e fenomenológico, onde a convivência com outras práticas do conhecimento aponta o embaçamento dos limites entre o produtor e o pesquisador, o artista e o crítico, a arte e sua audiência, questões que se engendram numa problemática maior, do entendimento do próprio espaço, lugar e função da arte contemporânea, fundamental para o nosso debate.



[1] No Brasil, os termos usados para designar tal linha de pesquisa variam pouco: “poéticas contemporâneas”, “estudos e experimentação da arte contemporânea”, “processos de criação artística”, sendo “poéticas visuais” o mais comumente usado.

[2] Vale lembrar aqui os famosos textos da década de 1960, Parangolé (1965), de Helio Oiticica, Specific Object (1966), de Donald Judd, Notes on Sculpture (1967), de Robert Morris.