Você está aqui: Página Inicial / Rede / Revista Número / numero Três / O GOSTO DA FISSURA, por Tatiana Blass

O GOSTO DA FISSURA, por Tatiana Blass

Um conto de Tatiana Blass.

O gosto da fissura


Rosnava sem ressentimentos. Uma palavra qualquer jogada da boca. A inconveniência repugnante, o saco cheio sem revolta e as moscas que rodeavam o balcão desinteressadas, encenavam a compostura do dono da mercearia.

Quando o cliente entrou na loja, espreguiçou seu dedo e, num intervalo sem insultos, abdicou de sua falta de vontade para proceder um cumprimento àquele que acabara de chegar:

-          Boa tarde.

-          Boa tarde. O senhor tem soro?

-    Não; somente o medidor. Posso te dar a receita -– respondeu, com uma generosidade abusiva.

-          Obrigado.

-          Obrigado o quê? O senhor quer ou não quer?

-          Não.

Preceitos do mau -humor ou a má sintonia entre a ocasião e a imprevisibilidade descreviam seu comportamento desalojado. Arrependido de sua grosseria, mais pela falta de lucros que esta lhe oferecia  do que por algum sintoma de alteridade, correu atrás do cliente insatisfeito.

-     Olha, mas eu tenho leite condensado.

-          Quanto custa?

-          O prazer intenso e degustação insolente.

-          Mas, e o sal?

-          Arranje em outro lugar.

-          Então me dá uma lata.

-          Aguarde aí que eu vou pegar. Desculpe, eu me enganei. Não tô com mais nenhuma no armazém.

Quando o cliente saiu e a porta debruçou seu resmungo, voltou imediatamente para o banquinho atrás do balcão. Por ali ficou, a olhar firme para o chão. Azulejo preto, azulejo branco. Um branco, dois preto, três branco. Detia-se na contagem para não escapar à lógica. Até que, no azulejo branco vinte e sete, a concentração deflagrou seu humor. A espera pela hora inabitada elucidava-o de seu apetite crescente. Cada número modificado no relógio alimentava sua saliva viscosa e nada mais refugiava-se de sua mente a não ser o ímpeto de devorar as sessenta e quatro latas de leite condensado que, na verdade, estavam no armazém.

Pela obediência cega e sem destino, desistia de relutar contra as amarras do gosto vicioso. Engolia obstinadamente o leite condensado, lambuzava toda a roupa e todo o resto que nem poderia supor que aquela gosma alcançasse. O doce insuportavelmente doce estagnava na goela, arranhava sua cavidade que já implorava por algum outro gosto qualquer. Desprecavido da audácia de sua vontade incessante, quase involuntária, nunca cicatrizava seu asco por aquele doce intolerável. Então engolia mais e mais. Sem saliva. Apenas com a fluência própria do doce. Já não sabia mais qual delinqüência era permitida aos excessos em assombro. Ser demais era esquecer de si. Deixar-se ao enjôo. A deselegância de se empanturrar, não agüentar mais nada. Nem nada.

Pensava sem raciocínio. O pensamento como uma fala em voz baixa. Andou dizendo muito. Mas seus sussurros já não eram deleite a sentido algum. O respaldo às degustações inadimplentes, ao exagero desenfreado era contato permissivo para a razão atrasada. A conexão entre a ação e o empenho de se ter a ação, cérebro-boca, esfacelava-se e desnutria-se pela cólera da fissura. E mais doce. Fissura. O incabível. Cada vez mais. Mais asco. O desprazer não era mais condição para elucidar-se de sua ação surtada.

Era deste chulo desajuste que o sofrimento se orgulhava. O descontrole e a rigidez. A satisfação estrangulada, o desconforto da inércia e a ação já quase mecânica de levar a mão lambuzada de leite condensado à boca.

A gosma branca encapava a umidade da língua áspera. O gosto doce abdicava de seu teor para tornar-se um amargo corrosivo, agudo, impassível de qualquer intervenção que causasse alívio. Esparramado no chão, como uma massa grudenta, o dono da mercearia, camuflado entre os azulejos brancos e pretos recobertos pelo leite condensado. O estômago inflado, o corpo quase imóvel, a fadiga como resistência.

Lata sessenta e três: o fracasso - não foi possível chegar à última.

 

Tatiana Blass, 37, morena, pernas ágeis, muito conhecida por sua habilidade em jogos eletrônicos, além de ter sido campeã de diversos torneios de trava-línguas. Atualmente encontra dificuldades no relacionamento com seu marido vietnamita. Orgulha-se das figurinhas do Jaspion que, a caminho da escola, afanava na banca do jornaleiro ranzinza. Fã incondicional de Lamartine Babo.