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PICASSO E O PARQUE DO IBIRAPUERA; O Brasil moderno? por Ana Magalhães

Picasso e o Parque do Ibirapuera: o Brasil moderno?

 

Karl Marx abria seu ensaio O 18 do Brumário de Luís Bonaparte (1852) citando Hegel: “todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes”. O próprio Marx acrescentaria: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Com esta frase, ele iniciava sua análise de desconstrução da legitimação que, em 1851, o sobrinho de Napoleão Bonaparte, Luís Bonaparte, se atribuía, fazendo uso das mesmas insígnias do tio depois do golpe de estado dado por ele em 1848 e sua respectiva auto-nomeação como imperador francês. Ao vestir as roupagens de seu tio, Luís Bonaparte buscava encobrir a crise política e social que a França atravessava, e projetar o país de modo a fazer frente à então poderosa Inglaterra vitoriana.

Ao longo do século 20, a historiografia também observou fenômenos como o descrito acima. E, certamente, o campo mais apropriado para se construir símbolos, alegorias e identidades é o da arte. O exemplo citado acima é absolutamente pertinente quando se trata de estabelecer esta aliança entre a construção de uma identidade e a legitimação política, de um lado, e a arte, de outro. Napoleão I tinha em seu entourage pintores como Jacques-Louis David e seus discípulos, que foram responsáveis por constituir sua imagem e aquela de seu governo e seus feitos. Seu sobrinho, 50 anos depois, tratou logo de criar o Ministério das Artes, que administrava a famosa Escola de Belas Artes de Paris, o Museu do Louvre, promovia os Salões anuais da Escola e era responsável pelas encomendas públicas artísticas. Aliás, estas encomendas serviram, e muito, a dar uma nova cara à capital francesa, uma vez que o Barão Haussmann – então prefeito da cidade e homem da confiança pessoal de Luís Bonaparte – empreendeu sua total reformulação.

No século 20, esta sistemática permanece. Hitler, durante o governo nazista na Alemanha (1933-1945), acompanhou de perto e chegou mesmo a desenhar projetos para a construção de um símbolo de seu poder. O artista Albert Speer concebeu esteticamente as paradas militares, as roupas do exército alemão, sem falar nas reformas e planejamento urbano da capital Berlim – uma delas resultou na abertura do grande boulevard no meio do Tiergarten, que gerou também um cruzamento de avenidas para onde foi deslocado o famoso Anjo da Vitória do Rei Frederico, cujo lugar original era na frente do célebre Reichstag.

O Brasil parece ter compreendido perfeitamente esta dinâmica desde sempre. Uma vez proclamada a Independência em 1822, nosso país não se cansou de também construir para si seus símbolos de glória e legitimação. Assim foi com o 2º Império, com a Velha República, com a Era Vargas e, sobretudo, durante o governo JK. Neste momento os sonhos mais altos se ergueram. A política econômica dos "50 anos em 5" tinha como símbolo maior a construção da nova capital federal no coração do país: Brasília, projetada por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, inaugurada em 1960.

No final da década de 40, tanto o Brasil como o continente europeu assistiram ao fim de regimes totalitários constituídos ao longo da década anterior, bem como à criação de importantes acervos de arte moderna. Não é uma coincidência que a arte moderna tenha iniciado sua institucionalização simultaneamente ao estabelecimento de democracias. O ano de 1937 é marcado, na Alemanha nazista, pela chamada exposição de "arte degenerada" em Munique: ali, o governo de Hitler dava início à destruição de acervos inteiros de obras modernas dos museus alemães. Em 1929 surge a primeira coleção de arte moderna que conhecemos: a do Museu de Arte Moderna de Nova York, que adquiriu o núcleo de seu acervo em leilões realizados na Suíça entre 1935 e 1936 – que, como se sabe hoje, incluíram obras pertencentes a coleções alemãs de arte moderna das quais os nazistas se defizeram. Ele viria a servir de modelo para a criação de pelo menos dois outros acervos de arte moderna importantes na década seguinte: o Museu Nacional de Arte Moderna em Paris, inaugurado em 1947, e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1948. No caso parisiense, o acervo nacional francês se estabelece por uma iniciativa do governo da República de Vichy e veio na esteira da febre provocada pelo chamado "Salão do Outono da Liberação" de 1944, que celebrou a liberação de Paris das mãos dos nazistas. Uma sala inteira do salão foi reservada a Pablo Picasso, que apresentou 74 telas pintadas a partir de 1940 – período em que o artista se filiaria ao Partido Comunista francês. Picasso se torna, assim, uma espécie de herói da arte moderna. Brassaï o chamaria de “símbolo da liberdade reencontrada”.

Picasso é ainda o grande homenageado na inauguração do Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, instalado no Palais de Tokyo, em 1948. O público veria pela primeira vez a célebre Guernica que o artista havia realizado entre os anos de 1936 e 1938, responsável por denunciar os horrores do massacre do pequeno vilarejo de Guernica. Foco de resistência à ditadura, a cidade foi bombardeada pela força aérea nazista em apoio ao governo de Franco. A tela ainda contava com uma aura toda especial, uma vez que para salvá-la foi necessário que no final da década de 30 saísse clandestinamente da França, para encontrar refúgio nos porões do MoMA de Nova York, de onde ela só pôde sair com o fim da 2ª Guerra Mundial.

Guernica também seria a grande estrela da 2ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1953. A exposição, que ocupou o Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega no recém construído Parque do Ibirapuera, deveria se encerrar em dezembro de 1953, mas foi estendida ao longo de parte do ano de 1954 para celebrar o IV Centenário da cidade de São Paulo. Aqui, mais uma vez, Picasso aparece vinculado à idéia de democratização e modernização. O projeto do Parque do Ibirapuera – também de Oscar Niemeyer – significava a entrada de São Paulo (carro-chefe da economia brasileira) numa nova era de industrialização. O país se modernizava e era preciso lhe atribuir uma nova identidade.

Trazer Guernica para São Paulo foi também um modo de legitimar o Brasil como um país democrático. 1954 marca a derrocada do governo Vargas, com seu suicídio em agosto. O processo eleitoral que se inicia leva Juscelino Kubitschek à presidência da República em 1955.

50 anos depois, em 2004, em meados da gestão do novo governo eleito – que sempre foi oposição – e com o fim da chamada era Fernando Henrique Cardoso, o Parque do Ibirapuera é, mais uma vez, palco da construção de símbolos de modernização e democracia. A Prefeitura de São Paulo conseguiu verbas para construir o teatro de ópera originalmente planejado por Niemeyer, mas que nunca tinha sido levado a cabo; e na Oca, no mesmo parque, a exposição Picasso (com o acervo do Museu Picasso de Paris) celebra os 450 anos da cidade. Entretanto, há de se observar dois elementos importantes, que constituem a farsa encenada neste caso. Em primeiro lugar, nem na primeira vez que Picasso foi mostrado no parque, isso ocorreu por iniciativa do poder público. Ao contrário dos acervos franceses de arte moderna, o Museu de Arte Moderna de São Paulo – assim como outras instituições criadas no mesmo período – é fruto da iniciativa privada. Ela também patrocina a vinda do acervo do Museu Picasso para a Oca. Por fim, a produção de Picasso exposta em 2004 não corrobora com a leitura que Guernica tinha no início dos anos 50. Agora, Picasso nos surge na sua intimidade: a exposição se organiza em torno da relação do artista com suas mulheres, tomadas como modelo para sua arte. A violência e o terror não aparecem aqui; o conflito é outro. E, tanto num caso como em outro, o poder público teve muito pouco a ver com as escolhas feitas.


                                            Ana Gonçalves Magalhães