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Editorial

Com esta quarta edição da revista Periódico Permanente queremos fortalecer pensamentos de comunidades marginalizadas e discursos de pós-colonialismo e feminismo de vários pontos de vista dentro do contexto brasileiro. Escolhemos comissionar novos textos de artistas que consideramos essenciais para o contexto brasileiro.

Em seu texto “Canibalismo no Brasil desde 1500”, Maria Thereza Alves escreveu sobre feminismo, produção de filmes brasileiros e o discurso pós-colonial a partir de uma perspectiva não eurobrasileira. Aproveitando a possibilidade de publicar no meio digital, incluímos duas obras da artista brasileira radicada em Berlim: Tcham Krai Kytom Panda Gret (Male Display Among European Population), de 2008, que debate com humor a obsessão de homens europeus para tocar seus testículos em público; e Iracema (de questembert), de 2009, que conta a história de Iracema, uma mulher indígena jovem de Corubime, uma aldeia isolada brasileira, que viaja até São Paulo e dali até a França. No mesmo contexto da contribuição de Maria Thereza Alves, incluímos também dois registros em vídeo de falas que aconteceram durante a última visita da artista ao Brasil em 2012: Shirley Krenak e Rosângela Pereira de Tugny participaram do seminário Políticas da imagem, atividade paralela à exposição do artista Clemens von Wedemeyer no Paço das Artes. As apresentações de Krenak e de Tugny também são contextualizadas pelo relato crítico do seminário, escrito por Lila Silva Foster e originalmente publicado no Fórum Permanente.

Além da obra da Maria Thereza Alves apresentamos mais quatro artistas feministas pouco conhecidas: Marcia X, Rita Moreira, Ilene Segalove e Fabiana Faleiros, aka Lady Incentivo. Após a mostra Arquivo X no MAM do Rio de Janeiro no início do ano (2 de fevereiro a 14 de abril de 2013), com curadoria de Beatriz Lemos, o museu integrou grande parte do acervo da artista à sua coleção. O texto da curadora aqui debate a obra de Marcia X em termos de crítica institucional e de feminismo, temas pouco abordados por artistas brasileiros em 1970 e também hoje.

A obra de Rita Moreira e Norma Bahia Pontes integra vários filmes produzidos durante longa estadia nos Estados Unidos durante os anos 1970 e início dos 1980. O filme She Has A Beard (1975), disponível em versão online pela primeira vez aqui, mostra a artista circulando por Manhattan e conversando com mulheres de várias idades e classes sobre o que elas acham de pelos faciais. Além de uma discussão de padrões de gênero, já na época bem desenvolvida nos Estados Unidos, Inglaterra e França, o filme demonstra e destaca, através da curiosidade e surpresa das pessoas entrevistadas em público – a oportunidade de dar depoimento em público –, a novidade do vídeo surgindo como meio popular na época.

O texto sobre a artista americana Ilene Segalove, participante da trigésima Bienal de São Paulo, foi apresentado dentro de um seminário do grupo Traveling Feministe no Forum des Images em Paris durante o primeiro semestre de 2013. Também uma pioneira de videoarte, Segalove comprou sua primeira Portapak em 1972. Este texto trata de sua trajetória e obras dos anos 1970 até hoje, através de uma breve análise de filmes como Mom Tapes, Riot Tapes e Whatever Happened to My future, entre outras obras.

Em Solta essa porra!, a artista brasileira Fabiana Faleiros, aka Lady Incentivo, faz uma incursão de pesquisa sobre bandas femininas contemporâneas no Brasil: o eclético atlas gerido por Faleiros combina gravações de som e documentações e obras em vídeo com um texto da própria artista que articula as suas seleções e observações.

Afinal, Jimmie Durham contribui com um comentário sobre a validade ética de criar um monumento para os Bandeirantes e coloca em pauta algumas observações sobre os manifestantes que picharam e entintaram o “Monumento às Bandeiras”, perto do Parque Ibirapuera, em São Paulo, no início de outubro de 2013. Fortemente ligado à questão das minorias étnicas dentro do discurso cultural homogeneizado no Brasil, o texto de Durham nos traz a questão de como estas minorias tem de contornar o discurso e as ações dominados pelo poder político e executivo, um poder fortemente elogiado e manifestado pelo monumento executado pelo escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret.

Selecionamos, com apoio da equipe do Periódico Permanente, outros conteúdos do acervo online do site do Fórum Permanente. Os relatos Nos termos do outro, da palestra de Hans Belting e da mesa com Ivo Mesquita, Laymert Garcia dos Santos e Jens Baumgarten realizadas no Instituto Goethe de São Paulo em 21 de agosto de 2008, por Gilberto Mariotti, e “Coreografias do cinema expandido: mestiçagem e outras representações”, relato feito por Emi Koide da fala do artista Isaac Julien realizada em 2 de setembro de 2012 no Sesc Pompeia, nos trazem a discussão sobre “o outro” e a relevância das dinâmicas de crioulização dentro e para o contexto brasileiro.

 

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“Prefiro não fazer”. (Melville, Bartleby)

“Fazer o que seja é inútil./ Não fazer nada é inútil./ Mas entre fazer e não fazer/ Mais vale o inútil do fazer.” (João Cabral de Melo Neto)

 

Quando começamos a pensar em uma orientação para o projeto editorial do Periódico Permanente nº 4 tive vontade de refletir um pouco sobre espaços minoritários de resistência. Pensamos em pequenas iniciativas que, seguindo um curso particular, pontuam de interrogações este mar plácido da vida média no Brasil de hoje, após os efeitos da afluência econômica da última década, com empregos e financiamentos para todos. As pequenas iniciativas editoriais são exemplos destas ações resistentes, que lembram os fanzines dos anos 1980, feitos para acontecer, não para durar. Outro exemplo disso para nós é um organismo como o Ateliê Piratininga, coletivo de artistas, principalmente gravadores, em atividade há vinte anos em São Paulo. O Piratininga é uma corporação de ofício, resistente em meio à cidade, um lugar de convívio, ensino, trabalho e reflexão. Ali efetivamente se produz uma temporalidade sensivelmente diversa daquela que rege o ritmo das coisas para fora do portão da rua. E não é um jardim de nefelibatas, mas sim uma resposta ativa e afirmativa, um enfrentamento, um desafio, silencioso e pacífico, ao discurso totalizante do utilitarismo social. E é sobre esse mito da utilidade que reflete Cioran no ensaio “A degradação pelo trabalho”, afirmando que “O verdadeiro trabalho, que deveria ser uma atividade de contínua transfiguração, tornou-se uma atividade de exteriorização, de abandono do centro do ser. É sintomático que no mundo moderno o trabalho indique uma atividade exclusivamente exterior.” Do autor romeno apresentamos outro de seus breves ensaios, “Prestidigitação da beleza”, sobre a beleza como potência de um mundo “como deveria ser”. Ambos os ensaios foram extraídos de seu primeiro livro, Nos cumes do desespero (São Paulo: Hedra, 2012, trad. Fernando Klabin).

Daí, das pequenas iniciativas, às vezes solitárias, quisemos evocar nesta edição a figura ímpar do poeta Glauco Mattoso e para isso fizemos uma entrevista com ele. Glauco é autor do Jornal dobrabil, uma obra singular na literatura brasileira recente, paródica, sarcástica, pervertida e excepcionalmente bem formulada, publicada como folhas avulsas que eram enviadas pelo correio a artistas e intelectuais. Folhas A5 compostas em datilografia emulando a diagramação da página de jornal e rindo de tudo e reduzindo e remetendo tudo à merda, devir-merda, como disse João Adolfo Hansen no ensaio “G.M. Admerdável”, de 1984, originalmente publicado na Arte em revista nº 8 e que republicamos aqui. O Jornal dobrabil foi publicado em uma edição particular de luxo em 1981 e teve uma segunda edição em 2001. Além de sua obra poética, Glauco é um personagem definido desde o início por sua tara por pés e por sua deficiência visual: Glauco Mattoso é um pseudônimo, inspirado em seu glaucoma associado a sua veia poética satírica que reivindica o patrocínio do poeta baiano colonial Gregório de Matos e Guerra. Junto da entrevista publicamos algumas fotos do lançamento do Jornal dobrabil em 1981, interessante registro de uma rica cena contracultural paulistana. Como espécie de degustação para nossos leitores, tangenciando ainda a questão dos gêneros e papéis de homens e mulheres, publicamos aqui um breve parágrafo do tratado de Gandavo sobre o Brasil escrito em 1576 no qual o religioso se refere a mulheres indígenas que vivem virilmente adotando um papel mais adequado a sua propensão particular.

Observamos ultimamente com interesse o universo da edição independente de livros. Caracterizada basicamente pela autonomia dos processos de produção e circulação, a edição independente de livros – meio de comunicação ainda eficaz, apesar da longevidade – é, hoje, um espaço singular de pensamento e expressão artística, em certa medida mais interessante, e certamente mais inquieto e fervilhante, do que os livros comerciais, cada vez mais refratários aos riscos econômicos, e aos outros. Na maior parte dos casos o livro independente é feito para celebrar e perenizar o interesse de um grupo, produto e propulsor de vínculos eletivos. São críticos, poetas, desenhistas, militantes de variadas causas utilizando o livro como quase panfleto, mais sanguíneo e direto. Eventos recentes em São Paulo como a 2ª Feira de Publicações Independentes do Sesc Pompeia (outubro de 2012) e as Feiras de Arte Impressa do Tijuana, além da 1ª Feira Plana (março de 2013), realizada no Museu da Imagem e do Som, que tiveram grande circulação de público, atestam o interesse e a vitalidade do segmento. A este propósito, publicamos aqui o relato de Julia Ayerbe, “Cair enviesadamente em relação a um plano”, do quarto dos Seminários Videobrasil 2001, “Intenções editoriais: quem lê e quem escreve, para quê?”, que apresenta estudos de caso de duas publicações independentes de arte, a revista Tatuí, feita no Recife, e a Asterisco, de Bogotá, Colômbia.

Lembramos aqui o livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre Kafka, em que falam da iminência de discursos minoritários no interior de línguas majoritárias a propósito de um judeu tcheco que se exprime em alemão, estragando e empurrando os limites do sistema linguístico que adota. No ensaio “Mística e masoquismo”, o filósofo francês escreve: “O fundo da arte, com efeito, é uma espécie de alegria, sendo mesmo este o propósito da arte. Não se pode ter uma obra trágica, pois há necessariamente uma alegria em criar: a arte é forçosamente uma libertação que leva tudo a explodir, começando pelo trágico. Não, não há criação triste, há sempre uma vis comica.” A arte e a reflexão podem, espera-se, divertir e apaziguar, sem acomodar.

Esperamos que esta quarta edição da Revista Periódico Permanente possa criar mais um fórum e arquivo e alimentar artistas e pensadores, pois um país rico e sem pobreza deve também articular e preservar as suas riquezas de gênero e de raças. Teremos que nos esforçar para a cultura visual e literária fazer parte deste processo.

 

Iuri Pereira & Tobi Maier

Dezembro 2013