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mundo-rua. tatiana roque

Em junho, as ruas do Rio de Janeiro tinham de tudo:

- jovens protestando pela primeira vez, motivados por participar de um evento coletivo de rua que não era carnaval nem futebol

- alunos de escolas públicas e particulares, em franco processo de politização, para um lado que ainda não sabemos qual (talvez os do Pedro II para a esquerda e os do Santo Inácio para a direita, mas não necessariamente)

- movimentos organizados que já estão aí há séculos: negros,sem-terra, sem-teto...

- infiltrados de direita, skinheads filhos da puta que quiseram sequestrar o ato atacando os grupos acima

- partidos de esquerda PSTU, PSOL, PCO identificados como partidos tout court, e para a infelicidade deles também ao PT

- infiltrados de direita, talvez para militares, enfim babacas que deram porrada em quem era de partido

- militantes do PT e da CUT que acharam corretamente que deviam participar das manifestações, afinal algumas das pautas são históricas destes movimentos

- pessoas, simplesmente pessoas, insatisfeitas com as concessões do governo e dos “políticos”, que não distinguiam entre um governo e outro, um político e outro e apoiavam os atos contra os partidos

- pessoas, simplesmente pessoas, que estão de saco cheio de ver o dinheiro jorrando para estádios e eikes e de não ver contrapartida à altura em suas condições de vida e de trabalho (ex. trabalhadores da saúde)

- pessoas, mais pra jovens muito jovens, que são contra a corrupção, não viram o que havia antes e compram parcialmente o discurso da mídia que cola a corrupção ao PT

- militantes que já foram muito petistas, como eu, putos com as concessões do governo aos ruralistas, contra os índios, aos evangélicos, aos felicianos etc.

- gays e simpatizantes super bem-humorados contra a absurda cura gay

- militantes de esquerda, mais velhos, que já foram pra rua inúmeras vezes lutar contra a corrupção, quando o PT era oposição, em uma luta que não era considerada vazia nem sem projeto

- muitos gritos contra a rede Globo, de esquerda e não

- pessoas, simplesmente pessoas, que estão putas

- ah! e os tais “vândalos”... radicais de direita ou esquerda? saqueadores? ou jovens que já sofreram muito na mão da polícia e que queriam dar o troco? jovens empoderados por uma nova ocasião política de se expressar e pertencer a algum movimento coletivo?

Enfim, podemos acrescentar outros mais, havia muitos atos em um. E o único grito que pegava, para todos: Ei Cabral vai tomar no cú! Às vezes Dudu no lugar do Cabral...

O que pensar a partir dos acontecimentos das ruas desde junho do ano passado?

Os sujeitos se constituem nas lutas, nos enfrentamentos, nos antagonismos, ficando putos. O processo de subjetivação destes novos sujeitos políticos está em disputa, em aberto, em tensão. Mesmo assim, é certo que esses movimentos levam a repensar o antagonismo em política, agora  em um mundo no qual a inventividade do capitalismo não pode ser subestimada, em particular sua plasticidade para capturar qualquer resistência.

Como inventar uma política autônoma, novas formas de organização, práticas capazes de manter uma assimetria, como condição para que a política que não seja moldada pelas formas que passam por dentro do Estado capitalista?

A valorização do capital hoje se dá na gestão de crises e desequilíbrios, os aparelhos políticos tradicionais exercendo o papel de órgãos de regulação de conflitos, a favor da forma Estado. Só as lutas minoritárias escapam das estruturas institucionais, jurídicas e políticas do Estado. Mas a radiografia das ruas de junho não sugere uma movimentação de minorias como estávamos acostumados.

As minorias também são codificadas, apropriadas por identidades fixas, e podem se tornar reféns dos mecanismos de captura. Para Deleuze, há duas maneiras pelas quais o capitalismo codifica as formações sociais, e que são interiorizadas pelas minorias: o corte nacional/extranacional, que torna toda minoria composta de estrangeiros, ainda que estrangeiros de dentro; o corte individual/coletivo. A minoria se constitui na impossibilidade de interiorizar essa última divisão, pois tudo que parece emergir do individual (familiar, conjugal, psíquico) se liga a outras questões nada individuais (étnicas, raciais, sexuais, estéticas), com uma relevância que é imediatamente coletiva e social.

Uma das maneiras pelas quais o capitalismo codifica as formações sociais, para integrá-las em sua própria dinâmica, é a da comunitarização, ou seja, o isolamento produzido pela fixação de uma identidade. O que leva alguns grupos a enxergarem suas reivindicações como parte da esfera  interna, como problemas que só concernem àquela comunidade, o que estamos chamando de problemas nacionais. Pode-se até tolerar a dimensão coletiva e política das questões que preocupam uma minoria, contanto que ele não se conecte a outras minorias, a coordenadas internacionais, transversais, ou seja a lutas estrangeiras.

Por isso, não dá pra combater o cinismo capitalista entrando no gueto, falando uma língua particular (não é minoria). Por outro lado, também não mobilizamos nenhuma força subjetiva renunciando à singularidade de cada grupo social (não é povo). É sim, usando muito do gueto, de sua sensibilidade e seu dialetos próprios, mas para conectá-los, conjugá-los a outras lutas. Assim, podemos inventar um devir autônomo imprevisível, que passa por conexões transversais entre atores diferentes, lutas transnacionais. Talvez possamos falar de uma nova internacional...

Black blocs e professores, midialivristras e garis, ocupas e rolezinhos, além de outros encontros explosivos: passe livre, sem-tetos, movimentos autônomos, advogados militantes, militantes partidários em fuga, estudantes, anarquistas, camelôs e outros tantos desgarrados. A maior potência do movimento desde junho surgiu nos momentos em que diferentes lutas se encontraram, produzindo mobilizações completamente imprevisíveis.

Precisamos urgente de novos parâmetros para avaliar, de modo imanente, a efetividade das lutas e das organizações desse ponto de vista. Que se liga aos modos de existência que elas propõem,  seu estilo, os problemas que coloca, as reivindicações que traz e seu potencial de conexão. O critério dessa avaliação é a aptidão que a gente tem para se articular com outras lutas, conectar nossos problemas com os problemas de outras minorias, ainda que muito distintos do ponto de vista das identidades.

Tal é a função de uma política diagramática que opera por relações transversais entre problemas distintos e se opõe a automação dos axiomas capitalistas. Novo internacionalismo que exclui a forma-Estado construindo práticas de um universal minoritário.

A emergência da figura universal da consciência minoritária como devir de todo mundo.

 

Tatiana Roque,

Rio, abril de 2014.

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