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Sem fé, sem lei, sem rei

 

 

Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é um substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. [Tztvan Todorov]

(...) quero falar da descoberta que o eu faz do outro. [Tztvan Todorov]

 

QUEM DEFENDE UM LUTA PELO OUTRO

A essa altura de nossa história surgiu um novo grupo social. No primeiro dia do encontro, em 24 de março de 2003, os pajés krahô se reuniram, sentando-se em em círculo. Formando um outro círculo em torno deles estavam os chefes de aldeia, os anciãos e os representantes da associação. Como todos os grupos Jê utilizam uma uma linguagem sociológica espacializada, essa disposição espacial era um indício seguro de uma coletividade que se distinguia em um contexto específico. Nesse caso, a linguagem espacial operava em dois níveis distintos. Em primeiro lugar, o encontro acontecia numa “aldeia” inovadora sui generis, uma espécie de Nações (Krahô) Unidas, e que se distinguia das aldeias comuns. Era um conjunto circular de casas em torno de um pátio central, muito parecido com todas as aldeias krahô e seguindo aliás o modelo ideal de aldeia dos povos de língua Jê. Mas as casas não eram unidades uxorilocais, como nas aldeias reais, e sim como que embaixadas das diferentes aldeias. O padrão circular era eloquente e compreendido por todos. Era igualmente fácil de entender a outra encenação espacial, a saber, o círculo de pajés circunscrito pelo anel de anciãos e chefes de aldeia. Assim, os Krahô traduziam e representavam visualmente em termos explicitamente krahô a novidade do regime representativo no qual estavam sendo introduzidos.

***
O recém-instituido colegiado de pajés passou à discussão de temas como a hierarquia de especialistas, o encaminhamento de pacientes e outras questões de procedimento. Entre os temas discutidos, o principal era a reivindicação de que o estado apoiasse, e na prática financiasse, o exercício da medicina tradicional. O raciocínio era lúcido. Se o conhecimento médico krahô era considerado importante por uma escola de medicina, então devia de ser tratado do mesmo modo que a prática médica ocidental (pública). Deveria haver instalações adequadas e os pajés e seus auxiliares deveriam ser pagos pelo estado. A mera sugestão dessa proposta horrorizou a faculdade de medicina e deixou constangido a representante do Ministério da Saúde. A Faculdade de Medicina estava disposta a fornecer assistência médica ocidental aos Krahô, como vinha fazendo no Parque Nacional do Xingu havia décadas, mas estava longe de tolerar, e menos ainda patrocinar, a medicina indígena.

Esse episódio aponta para os efeitos de espelhamento que fazem parte de qualquer negociação, e particularmente de transações de tipo jurídico ou político que envolvem povos indígenas e a sociedade mais ampla. Senão vejamos. Se por um lado os wayaká krahô ou pajés, bem descritos pela literatura etnográfica, podiam ser facilmente entendidos como tradicionais, por outro lado um colegiado de wayaká

com procedimentos acordados era uma novidade institucional decorrente de uma situação ou negociação específica, no caso a reivindicação de uma ‘medicina tradicional’ apoiada pelo estado, espelhando explicitamente a estrutura da bio-medicina ao mesmo tempo em que exigia reconhecimento por parte dela. O colegiado era por isso menos autêntico? Mas então, o que fazer com a forma espacialnaqualsehaviaapresentado?Ocolegiadopropriameneditofoiencenado por meio de dispositivos espaciais e lingüísticos estritamente tradicionais entre os Krahô, mostrando que recursos culturais krahô haviam sido mobilizados na empreitada. A questão tradição versus inovação se torna extraordinarimente intrincada. Em que bases há de se julgar da autenticidade do procedimento como um todo? Na forma de reivindicar (que pode ser entendida como “tradicional”) ou no objeto da reivindicação (que parece inovar)? Ou ainda na coletividade (que também por sua vez inova em linguagem tradicional)? A moral da história, ao contrário do que se possa pensar, é não decidir sobre a ‘autenticidade’ do procedimento; a moral é que a ‘autenticidade’ é uma questão indecidível. O colegiado era por isso menos autêntico? Mas então, o que fazer com a forma espacial na qual se havia apresentado? O colegiado propriamene dito foi encenado por meio de dispositivos espaciais e lingüísticos estritamente tradicionais entre os Krahô, mostrando que recursos culturais krahô haviam sido mobilizados na empreitada. A questão tradição versus inovação se torna extraordinarimente intrincada. Em que bases há de se julgar da autenticidade do procedimento como um todo? Na forma de reivindicar (que pode ser entendida como “tradicional”) ou no objeto da reivindicação (que parece inovar)? Ou ainda na coletividade (que também por sua vez inova em linguagem tradicional)? A moral da história, ao contrário do que se possa pensar, é não decidir sobre a ‘autenticidade’ do procedimento; a moral é que a ‘autenticidade’ é uma questão indecidível.

[Manuela Carneiro da Cunha, Cantes de ida y vuelta, Direitos intelectuais indígenas, “cultura” e cultura, Uma perereca e outras histórias]

Vandalism

In the Americas genocide is so celebratory.

Of course it is denied, excused, explained. But at the same time it is celebrat- ed. The brave killers who opened up the wilderness. The assassins, as they were so recently and aptly named by Indian people who had spray-painted on Victor Brecheret’s large sculpture of Bandeirantes just outside Ibirapuera Park in São Paulo during October 2013.

When I heard this news my heart, my mind, my spirit lifted. In 2010 I partici- pated in the 29th São Paulo Biennale and everyday had to pass what is to me, to us, this horrible monstrosity. I had often thought how nice it would be if a very long freight train were to accidentally de-rail and crash into this monu- ment to murder. It is one of really very many such monuments; as though the citizens need constant reminders of their history, their guilt.

By this essay I offer my most sincere gratitude to the people who defaced Brecheret’s hard and ugly edifice.

In New York City there is a statue of Theodore Roosevelt triumphantly astride a horse. Behind him are an Afro-American man and an American Indian man, walking humbly, not following where he might lead them so much as they signify being his property. This monument greets the public in front of the Museum of Natural History.

In the nineteen-sixties American Indian people, friends of mine, threw buck- ets of red paint on it more than once; a symbolic gesture that changed no attitudes among white people but gave courage to us.

A few years later, in the nineteen seventies, I moved to New York City to work at the United Nations for the International Indian Treaty Council. A high pri- ority was organizing a conference on Indians of the Americas at the U.N.’s Ge- neva headquarters. It was necessary to speak with Indian leaders in Canada, Mexico, Guatemala, Nicaragua, Panama, Columbia, Venezuela, Ecuador, Chile, Peru, Bolivia, and Argentina. It proved impossible to contact anyone in Brazil. Indian people in Brazil were not free to attend international conferences or

to form national organizations. Government agencies, anthropologists and Christian Church missionaries spoke for them, acted for them.

Even in the new century Indian people in Brazil have not been recognized as fully human under the constitution. This situation, which ought to be seen as intolerable, is at best excused as being good for the Indians, protecting them from the legal system. The excusers never seem to notice that this has not been working out at all; Indian people are persecuted, driven off their lands, killed on a regular basis. Much more important, and never looked at, (except perhaps with a certain perverse pride of the type one encounters among Texans also) is the obvious sub-text, which is the real text: it is being said that Brazil cannot protect indigenous people from Brazil, itself.

Brazil cannot protect indigenous people from Brazil. In that case, what? If indigenous people were to take up sophisticated weapons and fight back in methodical ways, surely Brazil would retaliate with vengeance. In other words, Brazil would protect itself from Indians.

If the Americas were the home of normal, rational ex-European settlers as they pretend, some council of American nations could take up the dire situation. Even with the astounding improvement in some South American countries, such an organization would not take action on behalf of the rights of indigenous people. In the twenty-first century we still live in primitive triumphalist, un- rational countries that are the spoils of genocide.

I imagine smug Brazilian guys sitting with their beer: one says to us, “You cannot call it genocide because genocide as a crime is a deliberate act. What happens in Brazil is just rough clumsiness. No one has ever set out to commit genocide against Indian people.” Except I think that really he would speak in the past tense. I think he would say that what has happened has happened. Very sad but now we must all move on.

For very many years I have been telling people that we are not in the past, our problems with the American countries in which we find ourselves are not in the past. The genocide of indigenous people of the Americas is not in the past.

The United Nations drew up a convention against genocide after the Second World War. This convention is explicit and detailed. Once U.N. conventions are drawn up they are then sent out to the member-nations for ratification. In those days, the U.S. had not ratified the U.N. Convention against Genocide.

In nineteen-seventy-seven we had a document of solid facts and evidence of the U.S. ongoing genocide against Indian people, ready to present to the U.N. We did not exaggerate nor mis-state the case.

I bet Brazil has not ratified the U.N. Convention Against Genocide either. And I bet, whether or not it has, if Indian people brought a case to the U.N. many Brazilian people would feel insulted. Many would feel betrayed.

In the Americas there are two giant countries, which have most made national narratives about their “early days”, the U.S. and Brazil. The myths they make of Bandeirantes, pioneers, cowboys, are the operating engines that run their cultures. For this reason any challenge to any part of the myth is responded to with childish anger. Nevertheless, the stories of the pioneers and Bandeirantes are destructively wrong.

The Bandeirantes enslaved, raped, killed Indian people, stole the land and made monsters of their own offspring. If they did it with a cheerful bonhomie, so much the worse. So much the more horrible. It they, in their time, felt innocent - so much the more horrible. But their admirers today are not innocent. Stupidity is never innocent.

The Bandeirantes are not the founders of São Paulo or Brazil. They are the founders of a bad situation that Brazilian Black people have to function around. And later poor Europeans, such as Ukrainians and Poles, have to function around. And most certainly Indian people must try to function around, to live poorly in a country that celebrates their genocide.

The mayor of São Paulo should give awards - and more spray-paint - to the artist who intervened in Victor Brecheret’s silly monument.

Jimmie Durham, Sila, Calabria, October 11, 2013

http://www.forumpermanente.org/revista/numero-4/textos/ vandalism?searchterm=Vandalism

Era la hermana Tuira Kayapo es una madre y guerrera indígena que mostró al mundo lo que sucede cuando las mujeres toman las riendas de su destino. El mundo la conoció en 1989 en el encuentro Altamira de Brasil contra la construcción de represas en el río Xingu (amazonas brasilero). Apareció en la sala con sus pinturas de guerra, desnuda y con un gran machete. Se acercó al presidente de la compañía eléctrica de Brasil, Petrobrás, y puso el filo del machete en su mejilla, y proclamó que su pueblo y toda la Amazonía lo considerarían como un acto terrorista y de guerra.

A continuación indicó: - “Usted es un mentiroso. Nosotros no necesitamos la electricidad. La electricidad no nos va a proporcionar nuestra comida. Necesitamos que nuestros ríos fluyan libremente, pues nuestro futuro y el de toda la humanidad depende de ello. Necesitamos nuestras selvas intactas para poder recolectar nuestro alimento. No necesitamos su represa!”.

Se despidió diciendo: Mi apellido: ofendida Mi nombre: humillada Mi estado: rebelde

Mi edad: la edad de piedra

No livro, você pergunta: “O que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério?”. E continua: “Levar a sério é, para começar, não neutralizar”. Partindo destes termos, quais são as maiores ameaças de “neutralização” do pensamento indígena no Brasil hoje?

Neutralizar este pensamento significa reduzi-lo ao efeito de um complexo de causas ou condições cuja posse conceitual não lhes pertence. Significa, como escrevi no livro, pôr entre parênteses a questão de saber se e como tal pensamento ilustra universais cognitivos da espécie humana, explica-se por certos modos de transmissão socialmente determinada do conhecimento, exprime uma visão de mundo culturalmente particular, valida funcionalmente a distribuição do poder político, e outras tantas formas de neutralização do pensamento alheio. Trata-se de suspender tais explicações-padrão, típicas das ciências humanas, ou, pelo menos, evitar encerrar a antropologia nela. Trata- se de decidir, em suma, pensar o outro pensamento como uma atualização de virtualidades insuspeitas do pensamento em geral, o “nosso” inclusive. Tratá-lo como tratamos qualquer sistema intelectual ocidental: como algo que diz algo que deve ser tratado em seus próprios termos, se quisermos respeitá-lo e incorporá-lo como uma contribuição singular e valiosa à nossa própria e orgulhosa tradição intelectual. Só depois disso poderemos, se tal for nossa veleidade, anatomizá-lo e dissecá-lo segundo os instrumentos usuais da redução científica das práticas de sentido humano.

Mas sua pergunta acrescentava “no Brasil hoje”. No Brasil hoje o que se vê é muito mais que uma “neutralização do pensamento nativo”. O que se vê é uma ofensiva feroz para acabar com os nativos, para varrer suas formas de vida (e portanto de pensamento) da face do território nacional. O que se pretende hoje — o que sempre se pretendeu, mas hoje os métodos são ao mesmo tempo cada vez mais sutis e eficazes sem deixarem de ser brutais como sempre foram — é silenciar os índios, desindianizar todo pensamento nativo, de modo a transformar aquela caboclada atrasada toda que continua a “rexistir” (este é o modo de existência dos índios no Brasil hoje: a “rexistência”) em pobre, isto é, em “bom brasileiro”, mal assistencializado, mal alfabetizado, convertido ao cristianismo evangélico por um exército de missionários fanáticos, transformado em consumidor dócil do estoque infinito de porcarias produzidas pela economia mundial. Em suma: fazer do índio (os que não tiverem sido exterminados antes) um “cidadão”. Cidadão pobre, é claro. Índio rico seria uma ofensa praticamente teológica, uma heresia, à ideologia nacional. Para fazê-lo passar de índio a pobre, é preciso primeiro tirar dele o que ele tem — suas terras, seu modo de vida, os fundamentos ecológicos e morais de sua

economia, sua autonomia política interna —‚ para obrigá-lo a desejar consumir o que ele não tem — o que é produzido na terra dos outros (no país do agronegócio, por exemplo, ou nas fábricas chinesas).

http://oglobo.globo.com/cultura/livros/eduardo-viveiros-de-castro-que-se- ve-no-brasil-hoje-uma-ofensiva-feroz-contra-os-indios-17261624

Hoje faz 11 anos que nosso irmão e companheiro Mário Juruna (Xavante) nos deixou. Foi o único deputado federal índio na história do Brasil, eleito pelo PDT /RJ(1983-1987). Responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio, que levou o problema indígena ao reconhecimento oficial. Era destemido, enfrentavam os generais e a cúpula em plena Ditatura Militar, pelos direitos indígenas.

Foi também o único deputado na história do Brasil a denunciar o esquema de corrupção entre os políticos. Mostrando (foto) e devolvendo publicamente os 30 milhões de cruzeiros recebido na tentativa de suborno em 1984 por parte do empresário Calim Eid para votar em Paulo Maluf, candidato dos militares à presidência da República no colégio eleitoral. Votou em Tancredo Neves pelos direitos indígenas até hoje não cumprido.

Não conseguiu se reeleger nas eleições de 1986, mas continuou ativo na política por vários anos. Esquecido, pobre vindo a falecer em decorrência de diabetes e hipertensão em 17 de julho de 2002.

[Carlos Terena]

Totem

ANDRÉ VALLIAS

sou guarani kaiowá munduruku, kadiwéu arapium, pankará xokó, tapuio, xeréu

yanomami, asurini cinta larga, kayapó waimiri atroari tariana, pataxó

kalapalo, nambikwara jenipapo-kanindé amondawa, potiguara kalabaça, araweté

migueleno, karajá tabajara, bakairi gavião, tupinambá anacé, kanamari

deni, xavante, zoró aranã, pankararé palikur, ingarikó makurap, apinayé

matsés, uru eu wau wau pira-tapuya, akuntsu kisêdjê, kinikinau ashaninka, matipu

sou wari’, nadöb, terena puyanawa, paumari, wassu-cocal, warekena puroborá, krikati ka’apor, nahukuá

jiahui, baniwa, tembé kuikuro, kaxinawá naruvotu, tremembé

kuntanawa, aikanã juma, torá, kaxixó siriano, pipipã rikbaktsá, karapotó

krepumkateyê, aruá kaxuyana, arikapu witoto, pankaiuká tapeba, karuazu

desana, parakanã jarawara, kaiabi fulni-ô, apurinã charrua, issé, nukini

aweti, nawa, korubo miranha, kantaruré karitiana, marubo yawalapiti, zo’é

parintintin, katukina wayana, xakriabá yaminawá, umutina avá-canoeiro, kwazá

sou enawenê-nawê chiquitano, apiaká manchineri, kanoê pirahã, kamaiurá

jamamadi, guajajara anambé, tingui-botó, yudjá, kambeba, arara aparai, jiripancó

krenak, xerente, ticuna krahô, tukano, trumai patamona, karipuna hixkaryana, waiwai

katuenayana, baré menky manoki, truká kapinawá, javaé karapanã, panará

sakurabiat, kaingang kotiria, makuxi maxakali, taurepang aripuaná, paresi

iranxe, kamba, tuxá tapirapé, wajuru mehinako, kambiwá ariken, pankararu

sou guajá, djeoromitxi koiupanká, tunayana ikolen, dow, wajãpi amawáka, barasana

kubeo, kulina, ikpeng ofaié, hupda, xipaya suruí paiter, xokleng tupiniquim, kuruaya

zuruahã, galibi tsohom-dyapa, waujá xukuru, kaxarari tuyuka, tumbalalá

borari, amanayé hi-merimã, aikewara kujubim, arikosé arapaso, turiwara

kalankó, pitaguary shanenawa, tapayuna coripaco, kiriri
kaimbé, kokama, makuna

matis, karo, banawá chamacoco, tenharim tupari, krenyê, bará wapixana, oro win

sateré mawé, guató xetá, bororo, atikum ye’kuana, tiriyó canela, mura, borum

Canibalismo no Brasil desde 1500

Em uma determinada noite em Berlim, cheguei em casa muito feliz. Dancei e pulei de alegria. Eu tinha ido para uma conferência sobre documentários brasileiros onde, pela primeira vez, os brasileiros de raça mestiça participaram. Deixem-me ser clara: a conferência incluiu pessoas que não eram os descendentes de europeus. Até aquele momento, euro-brasileiros controlavam o discurso sobre cinema e quase todas as outras áreas do Brasil. Certamente eles têm controlado as artes visuais, que são fortemente influenciadas por artistas descendentes de europeus – e a definição deles do que o discurso da arte poderia ser. Isto é, em um país que tem a segunda maior população negra do mundo, perdendo apenas para a Nigéria (só para dar rapidamente uma perspectiva sobre a participação distorcida dos brasileiros não-europeus na sociedade brasileira, em 6 de novembro de 2013 a presidente Dilma assinou um projeto de lei – que aguarda aprovação do Congresso – reservando 20% das vagas para concursos públicos para negros. Infelizmente, os povos indígenas foram deixados de fora).

Esta conferência, “Political Documentary Films in Brazil” (Documentários Políticos no Brasil), foi realizada em novembro de 2011 na Haus der Kulturen der Welt, em Berlim, com filmes anteriormente apresentados no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, selecionados pela organizadora do Festival, llda Santiago. A mesa da discussão contou com a Sra. Santiago no centro, ladeada pelos cineastas: à esquerda dela, quatro jovens brasileiros de origem mestiça e à direita quatro euro-brasileiros, dois dos quais eram mulheres (três, se incluírmos a Sra. Santiago). A divisão visível era apenas uma reafirmação da presença colonial no Brasil.

A tensão devido à raça (e, portanto, de classe) e as origens dos dois grupos cresceu durante a discussão e, finalmente, tornou-se pública, pelo menos para aqueles que poderiam reconhecer o que estava acontecendo. Eu acho que a tensão passou despercebida pelo público alemão. Esta tensão veio à tona quando Sandra Kogut, sentada ao lado euro-brasileiro da mesa, agradeceu aos jovens mestiços por seu ponto de vista (não é fantástico como as elites têm o privilégio da “perspectiva histórica” enquanto o resto de nós simplesmente tem “pontos de vista?”). Ela disse que deve ser difícil para eles serem sempre convidados para fazer filmes sobre a mesma coisa – as favelas, onde vivem. Ela disse que era importante, no cinema, ter um olhar refrescado – para ser capaz de ver as coisas de novas maneiras. O que estava implícito era que não seria possível para qualquer um desses moradores da favela atingir um nível

profissional ou interessante no cinema. Luciano Vidigal, um dos cineastas de raça mestiça, inclinou a cabeça para olhar para o teto. Reconheci este gesto como a postura adquirida por quem lida com as diversas situações no Brasil estruturadas para garantir que os descendentes de europeus estejam no poder. Luciano explicou que, com os olhos deles, aqueles que vivem nas favelas agora estavam vendo. O que estava implícito era que aqueles que vivem nas favelas agora estavam olhando para os euro-brasileiros que têm controlado o cinema e, portanto, para a representação de todos os brasileiros até agora. Somente nos últimos anos tenho nos visto representados no cinema ou em outras manifestações culturais em trabalhos que são tanto feito por nós quanto que nos representam. No passado, havia apenas representações feitas por eles sobre nós.

Tamar Guimarães, uma artista euro-brasileira, durante uma conversa que tivemos, explicou que “não podemos definir um ‘nós’ e um ‘eles’ com clareza (no Brasil).” Uma vez que os sistemas de privilégios raciais no Brasil não reconhecem nenhuma ambiguidade, temo que eu também vou continuar a escrever sem tais nuances.

Cadu Barcellos, um outro jovem cineasta mestiço, acrescentou: “Nosso olhar não é melhor nem pior do que o de ninguém... é singular como qualquer outro... mas o olhar de quem sofre, direta ou indiretamente, deve ser ouvido”. Notei que, quando Sandra começou seu desafio paternalista de olhar com um “olhar refrescado”, uma mulher jovem brasileira de classe médio-alta na plateia (o tipo europeu com o cabelo longo, que pode ser reconhecido de imediato) olhou para o outro lado do corredor, para uma jovem brasileira do mesmo tipo. Ficou claro que ambas simpatizavam com Sandra contra os homens de raça mestiça e elas caçoaram quase silenciosamente quando Cadu começou sua resposta.

A atitude condescendente de Sandra Kogut logo desencadeou o ódio de classe de Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha. Ele também é um cineasta, sentado do lado euro-brasileiro da mesa. Ele começou a falar naquele tom superior de voz que fez o meu cabelo ficar em pé. Sendo filha de uma empregada doméstica, eu sou sensível às tentativas daqueles que são poderosos de explorar as suas dominâncias, e minha reação é sempre tentar sair da situação o mais rápido possível.

Eryk Rocha fez um grande show de olhares para o lado mestiça da mesa, tornando óbvio que ele não conhecia nenhum dos nomes dos cineastas

daquele lado. A mensagem era clara, que ele não os achava interessantes o suficiente para sequer se preocupar em saber seus nomes e, é óbvio, ele não iria lidar com eles socialmente. Ele finalmente pronunciou o nome de Cadu, em tom arrogante de incredulidade, dizendo: “Cadu, Cadu, esse é o seu nome?” – indicando espanto de que se tratava de um nome real.

Eryk passou a dizer a Cadu que o seu trabalho sobre as favelas era importante, mas que não estavam ali para discutir política, mas poética. Isso apesar do título da palestra ser “Political Documentary Films in Brazil.” Talvez ele também tivesse esquecido que o grande Silvio Tendler tinha acabado de dizer, no início da noite, que “cinema é politico” (devo observar que Tendler também estava sentado no lado euro-brasileiro da mesa, embora ele tivesse tido a gentileza de admitir sua origem de classe média, o que é óbvio para os brasileiros).

Wagner Novais, do lado mestiço da mesa, afavelmente respondeu: “Eu acho que a democratização da cultura (dá) novos prismas para a aquela realidade, para o pessoal que vem desta origem, que trabalha com cinema... há um processo formal que tudo mundo passa: faculdade, curso de especialização, não estamos privados de um discurso estético, artístico e poético. Claro que devo minha especificidade à minha origem, à minha vivência.”

No final da noite, durante as perguntas, uma jovem mulher afro-brasileira estudando para seu doutorado em Berlim disse: “Eu gostaria de agradecer a possibilidade de esta aqui conversando com brasileiros de tons diversos, de olhares negros, brancos.” Nós duas estávamos tão contentes com este tão esperado (e, até aquele dia, inimaginável) momento em que os brasileiros não- brancos iriam de fato ser incluídos publicamente em uma discussão sobre a cultura do Brasil.

Em seguida, fui para casa e dancei para comemorar um Brasil de novas possibilidades. Sandra Kogut e Eryk Rocha pareciam ter nada menos do que declarado guerra; demonstrando que estas elites vão continuar, como todas as elites fazem, a não compartilhar o poder. Eles declararam, de forma surpreendentemente insensível e sem constrangimento nenhum com a possibilidade de serem desafiados, a sua intenção de lutar contra os cineastas que de ascendência não-europeia. Mas nós já sabíamos disto. É o que as elites brasileiras estão fazendo desde o século XVI. Mas agora o teto começa a cair sobre eles.

Alguns anos atrás fui convidado pela artista Tamar Guimarães a participar em

uma conversa sobre pós-colonialismo. Conheci Tamar, quando, como estudante de arte, ela me pediu uma crítica sobre seu trabalho. Eu não gosto de ter conversas sobre o pós-colonial no Brasil, porque inevitavelmente acabam mal. No entanto, como Tamar foi criada na Europa, eu pensei que talvez as coisas seriam diferentes. Eu, portanto, concordei. Do ponto de vista indígena, não houve um fim à colonização em qualquer lugar das Américas. Pós-colonização é um fenômeno europeu – sim, naqueles países que perderam suas colônias devido à luta dos povos nativos dessas colônias. Nas Américas a população indígena continua a ser colonizada pelos descendentes dos europeus que permanecem com o poder econômico e político.

É importante mencionar que, em 1994, havia apenas uma pessoa indígena no Brasil que recebeu um diploma universitário. Na rica província de Minas Gerais (que é abundante em minerais, daí o seu nome obsceno), a primeira indígena a receber um diploma universitário, Shirley Djukurna Krenak, o recebeu apenas em 2006. Shirley foi para uma universidade local, na cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais. Sistemas de cotas raciais, que foram recentemente introduzidos no Brasil, têm permitido a estudantes indígenas se matricular em universidades financiados pelo governo federal.

Infelizmente, porque a maioria vem de famílias empobrecidas e vivem longe dos centros urbanos, o custo da viagem, hospedagem, alimentação e material escolar muitas vezes torna proibitivamente caro para eles continuar e concluir os seus estudos. Há uma alta taxa de desistência. Neste ponto, uma vez que existem apenas centenas de estudantes indígenas na universidade, qualquer filantropo poderia facilmente resolver esse problema com a doação de fundos para estudantes indígenas. Digamos que, em um total de 600 alunos fosse garantido um subsídio de € 5.000 cada, isso resultaria num total de €3.000.000 por ano: uma soma que poderia ser facilmente conferida por, digamos, trinta filantropos. Mulheres ricas poderiam criar um fundo extra para as mulheres indígenas na universidade, especialmente para aqueles que estudam medicina, que é uma educação cara. Imagine o incrível começo de mudança teríamos em todos os campos do discurso no Brasil – onde o europeu não iria mais dominar o padrão de “normalidade”. Teríamos a oportunidade de começar a pensar em maneiras diferentes... de ver de maneiras diferentes.

Voltando a Shirley e Minas Gerais: Eike Batista, (o irmão de Helmut Batista, que comanda residências artísticas, publicação de livros e projetos, etc.) é de descendência alemã-brasileira e foi, em 2012, o homem mais rico do Brasil e o sétimo mais rico em todo o mundo. Ele nasceu em Governador Valadares,

em Minas Gerais, onde Shirley e sua família se estabeleceram depois de serem expulsos de sua reserva (como foram todos os outros Krenaks), devido à riqueza mineral em suas terras. Eike iniciou sua carreira de negócios com a compra de ouro na Amazônia e, em seguida, passou a possuir oito minas de ouro entre muitas, muitas outras coisas – o pai de Helmut e Eike foi o ministro de Minas e Energia durante duas administrações presidenciais e ex-presidente da empresa de mineração Companhia Vale do Rio Doce, originalmente baseada em Minas Gerais. Shirley Krenak é dos povos indígenas Krenak em Minas Gerais e eles têm visto suas terras sistematicamente reduzidas e destruídas devido à sua riqueza mineral. Shirley explicou que:

“Em 1970, mais minerais foram descobertos nas nossas terras e ao mesmo tempo ainda mais fazendeiros começaram a destruir as nossas terras para criar gado, entrando em reconhecido território Krenak. Como resultado das ações desses poderosos grupos políticos, o governo federal declarou em 1970 que, oficialmente, os Krenak estavam extintos. Mas como estávamos muito bem vivos, fomos forçados a retirar-nos das nossas terras e transportados para longínquas reservas com diversos grupos indígenas de linguagens diferentes. Os Krenak que resistiram foram presos e colocados em prisões recém- construídas, que funcionavam como colônias penais com trabalhos forçados, solitárias, violência diária, tortura e assassinatos. Durante esse tempo muitos de nós viveram clandestinamente com medo de novas migrações forçadas e prisões. O ocultar e negar a nossa identidade étnica foi talvez uma das principais e mais eficientes “armas” na dura luta contra o genocídio. Durante o exílio começamos a nos organizar e alguns anos depois voltamos a caminhar em direção à Reserva Krenak – alguns andaram durante 96 dias. Em 1988 fomos novamente expulsos das nossas terras, as nossas plantações destruídas assim como a nossa escola.”

Os Krenak lutaram e conseguiram dar a volta ao decreto de extinção e alguma das suas terras voltaram a ser demarcadas em 1997. O juíz disse que se era terra que os Krenak queriam então era terra que lhes seria dada. E de acordo com suas palavras, tudo o que não era terra foi destruído, como árvores de frutos. A reserva hoje tem 4970 hectares de terra infértil para 300 indígenas.

Em 2005, os Krenaks, incluindo Shirley e seus irmãos, montaram um bloqueio de cinquenta horas da ferrovia da Companhia Vale do Rio Doce de (hoje Vale S.A.), que transporta minerais da região. Foi a primeira vez em quase 100 anos que a ferrovia, que atravessa território Krenak e causou tantos danos à comunidade Krenak, não enviou trens sobre suas terras. Foi sob a administração do pai de

Helmut e Eike que a Companhia Vale do Rio Doce (Vale S.A.) tornou-se uma das maiores empresas de minerais do mundo (ocupada atualmente o segundo lugar). A Vale extrai, entre outras coisas, ferro, o que resulta na contaminação do Rio Doce. Houve desmatamento de terras Krenak, a fim de fornecer madeira para combustível para a ferrovia e o transporte de minerais até o porto. Como resultado do protesto dos Krenaks, a Vale finalmente sentou para negociar com a comunidade. Isto resultou em uma compensação de R$ 200 (cerca de € 66) por mês para cada Krenak, por um período de seis anos. Existem cerca de 300 Krenaks em Minas Gerais que sobreviveram ao genocídio pelos portugueses e, em seguida, o genocídio pelos euro-brasileiros.

Assim, parece que podemos definitivamente descartar o homem mais rico do Brasil de contribuir para uma discussão abrangente da vida no Brasil (recentemente, Eike perdeu muito dinheiro. Ao mesmo tempo, o programa de artistas em residência de seu irmão foi suspenso).

O pai de Eike e Helmut também foi responsável por iniciar a mineração a céu aberto na Serra dos Carajás. Apenas 1% das espécies da área sobreviveram à represa Tucuri, que foi construída, em parte, para fornecer energia para a mina. A ferrovia foi construída (o pai de Eike e Helmut originalmente começou sua carreira como engenheiro ferroviário) nas terras dos Awá Guajá, o que resultou nessas terras sendo rapidamente invadidas por madeireiros, fazendeiros e pequenos agricultores. A população Awá Guajá foi severamente reduzida devido às mortes causadas pela defesa de suas terras e também pela introdução de doenças europeias, às quais os Awá Guajá não têm imunidade. Em uma só comunidade de 91 Awá Guajás, apenas 25 sobreviveram quatro anos depois. Em outras palavras, repetiu-se exatamente o mesmo tipo de eliminação que aconteceu décadas antes, com a construção da ferrovia em terras Krenak – o pai de Eike e Helmut disse que, com a mina de Carajás, eles eram pioneiros no desenvolvimento sustentável (!).

Agora de volta a Tamar e pós-colonialismo no Brasil. Tamar disse:

“Com tamanha circulação de pessoas, é difícil falar de um estrangeiro ou de um brasileiro “original”... E não me refiro a esta falta de origem com desapontamento. Penso nela com alívio. A base instável do Brasil, quando se trata de referências culturais, não é um traço a se lamentar, mas sim uma característica verdadeiramente positiva – algo que deveria nos permitir ver uma relação diferente com o pós-colonial, entendido explicitamente como este estado fraturado... No entanto, o Brasil sempre teve de lidar com múltiplos

pontos de referência, “impurezas” culturais e inconsistências simbólicas no seu centro. Tem sido assim, para melhor, creio eu... Realmente, talvez não possamos ter como objetivo a descolonização, uma vez que não podemos definir um “nós” e um “eles” com clareza. Talvez tudo o que possamos fazer é falar de entrelaçamentos... Essa foi a forma de, no Brasil, já desde a década de 1920 (com o Manifesto Antropofágico), se propor uma relação diferente e não subalterna com o Ocidente.”

Eu gostaria de adicionar um apêndice aqui, uma observação sucinta feita pela socióloga Heloisa Buarque de Hollanda sobre o Manifesto Antropofágico: “(O) auge do modernismo brasileiro, em termos de definição de uma identidade cultural moderna para o país, foi a proposta de um modelo ‘antropofágico’, que sugere uma atitude, não de imitação dos países centrais, mas de uma apropriação antropofágica dos aspectos ‘desejáveis’ de diferentes culturas e valores”. E ela passa a questionar, apontando: “Na verdade, quem come quem, e o que vale a pena jogar fora durante o banquete antropofágico?” Eu concordo que essa ideia modernista, que teve a função de escorar o nacionalismo, não é mais válida numa época em que a importância de reconhecer as diferenças e dar agência à alteridade é pertinente na construção de novos modelos para a possível sobrevivência da sociedade.

Minha resposta a Tamar:

“Claro que podemos falar de ‘nós’ e ‘eles’ com clareza, partindo do ponto de vista da colonização. Existem os indígenas e os não-indígenas... Não se pode começar a superar a colonização, como é o caso do Brasil, se essa condição não é admitida porque a distinção entre colonizador e colonizado supostamente não pode ser feita. (Camus, um não-indígena argelino, por exemplo, entendia que a descolonização da Argélia não seria possível). A descolonização tem ocorrido em muitas partes do mundo e, talvez, possamos olhar para esses lugares fornecendo modelos possíveis, enquanto estamos num processo de inventar os nossos próprios... Em que medida os não-indígenas estariam confortáveis em concordar que a descolonização poderia começar? Por exemplo, poderiam os não-indígenas do México, que são apenas uma maioria moderada, concordar que a colonização existe? Até agora não. E o que aconteceria em países como o Brasil, onde os não-indígenas são uma abrangente maioria e os indígenas estão em clara minoria? Os não-indígenas, como é o caso, sentem-se muito confortáveis no pressuposto de que a colonização terminou. Sendo este o caso, o que dizer aos indígenas? Que não existem? Que não contam? Que devem progredir? Como poderia a sua situação colonial ser ultrapassada através de

um decreto unilateral determinado pelo colonizador? Através da negação dos indígenas colonizados? Penso que o processo de descolonização pode iniciar- se através de um processo de observação e, por consequência, da admissão intelectual de que as Américas vivem uma condição colonial...”.

Eu gostaria de acrescentar que os efeitos da colonização, mesmo que o Brasil fosse descolonizado, permaneceriam para sempre. Um exemplo é o uso do conceito de canibalismo, desenvolvido no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, um euro-brasileiro de uma família eminente. Este conceito legitima a apropriação das culturas indígenas e negros pela elite europeia. Esta apropriação atua em defesa de uma ideia “brasileira” da autenticidade da mesma elite europeia que exige na sua lógica e prática o desaparecimento físico dos povos nativos originais, para que este novo especial “Brasil” possa permanecer incontestável e inquestionável. A premissa é que eles estão canibalizando a arte europeia como “nativos” e usando os seus impulsos “brasileiros” para canibalizar e, em seguida, melhorar a arte europeia. Desta maneira, toda a história da colonização é perdida já que somos, teoricamente, iguais uns aos outros e, assim, pós-coloniais.

O Brasil não é especial. Seu início foi apenas um bando de criminosos racistas correndo por aí matando, escravizando e estuprando. Antepassados paternos de Oswald fizeram parte da primeira onda de colonizadores no início do século XVII, na província de Minas Gerais. Esses criminosos estavam à procura de ouro. O eufemismo preferido é “pioneiros de mineração” e ao longo do caminho eles mataram ou escravizaram os nativos locais Puri. Como os Puri se mostraram difíceis de exterminar eles foram infectados com varíola. Em 1864, se presume, seu extermínio completo foi alcançado com êxito.

Para continuar a história de canibalismo no Brasil: No Brasil real, que consiste de ambos os povos indígenas, negros e colonizadores (para aqueles que negam o uso contemporâneo do termo, observe a existência da organização do governo federal, INCRA, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Para aqueles que citam a sua chegada tardia no final do século XX ou ontem e a não-participação na brutalidade colonial, por favor, note que você está ocupando terras indígenas). Shirley Krenak explicou:

“Durante o massacre (contra nós), lendas de antropofagia e inúmeras outras histórias similares acerca do nosso povo começaram a circular. Um rei que chegou às nossas terras, chamado Dom João VI, decidiu em 1808 declarar guerra ao meu povo, uma guerra chamada ‘Guerra Justa aos Botocudos’.

Colonos começaram a receber benefícios fiscais em troca das cabeças dos Krenak. A justificação para esse nome, ‘Guerra Justa’, era porque o nosso povo estava a ‘obstruir’ o desenvolvimento pela região. Para ser honesta, o que o meu povo estava a impedir eram sim os incêndios florestais, a poluição dos rios, a extração da nossa riqueza natural e a nossa dignidade manchada com sangue inocente. E porque eles pensavam que esta terra não tinha dono, decidiram nos exterminar completamente.”

Agora, de volta para as elites e canibalismo. A fascinação contínua dos euro-brasileiros com o canibalismo pode, talvez, ser um reconhecimento subconsciente do genocídio cometido no Brasil contra a população nativa. Se você considera quem está comendo quem, o nível de canibalização foi surpreendente. Pensa-se que houve cerca 20 a 30 milhões de indígenas no Brasil no começo da colonização portuguesa em 1500. Em meados do século XX, devido ao genocídio, escravidão e guerras bacteriológicas, a população foi reduzida a 180.000 pessoas. Ao mesmo tempo, 540 línguas (não dialetos) no Brasil foram extintos devido à colonização.

Eu acho que essa conversa com a Tamar deveria ser re-intitulada: “Mais uma vez uma conversa que falhou na América Colonial.”

Em uma conferência sobre “Identidade Cultural e Artística nas Américas”, organizada por Ivo Mesquita, da eminente família euro-brasileiro, e organizado em São Paulo, em 1991, nenhum povo indígena ou afro-brasileiro foram convidados como representantes de sua cultura. A delegação brasileira de cerca de uma dúzia, todos euro-brasileiros, incluiu Heloisa Buarque de Hollanda, da família eminente de Hollanda. Heloisa também é uma feminista, sua publicação no livro da conferência é intitulada “Feminismo: Construção de Identidade e a Condição Cultural” (“Feminism: Constructing Identity and the Cultural Condition”).

Perguntei aos delegados brasileiros de um painel: “Por que aqui não há povos indígenas ou afro-brasileiros como delegados?” Uma mulher da delegação respondeu (eu não sei se foi ou Heloisa ou Aracy Amaral, Ana Maria Belluzzo ou Stella Teixeira de Barros) que os brasileiros não são racistas e não consideram convidar delegados por “raça” e que eles (os delegados), portanto, representam todos. Nenhum desses palestrantes altamente qualificados e privilegiados questionaram sua participação exclusiva como euro-brasileiros no processo de definição do Brasil, que tem a segunda maior população negra do mundo.

Não teria sido um gesto surpreendente de empoderamento se Heloisa Buarque tivesse, ao invés de aceitar o convite de participação, insistido que uma mulher indígena tomasse seu lugar? Ou se não, percebendo que não haveria participação indígena brasileira ou de afro-brasileiros, imediatamente e publicamente renunciasse sua posição como delegada e deixasse a conferência? Heloisa escreve eloquentemente que a “experiência de mulheres e negros brasileiros continua sendo essencialmente marcada pela intolerância pelo preconceito sexual ou racial.” (É interessante notar, no entanto, a omissão dos indígenas mais uma vez).

A elite não desiste de seu poder. Não importa quão feminista é.

A conferência Eco-Sindical (Ecologia e Sindicatos) da Força Sindical, em São Sebastião em São Paulo, em 1991, foi a primeira vez que os trabalhadores se reuniram no Brasil para discutir questões ambientais. A Força Sindical é uma organização sindical e como é de costume a maioria dos delegados eram homens. Eu iria falar no primeiro dia logo após a sessão preliminar. Após o almoço, me perguntaram se eu concordaria em falar no final do dia, porque estávamos atrasados . Eu concordei. No final do dia, perguntaram-me se eu poderia ceder o meu direito de falar. Eu respondi que não tinha nenhum problema em não falar, eu sou uma palestrante relutante e estava muito feliz de não estar no olho público. Mas como eu não estava representando a mim mesma, esclareci que eu era a única palestrante para falar das questões indígenas. Eu insisti que não poderia haver uma conferência em São Sebastião, um dos primeiros enclaves brutais da colonização e da escravidão dos povos indígenas, e não ter palestrante sobre o tema. Eu acho que, talvez, tenham me pedido para não falar não porque eu ser uma mulher mas, em vez disso, porque os povos indígenas não são vistos como importantes para participar de discussões mais “sérias”. Devo acrescentar que, embora fosse uma organização da classe trabalhadora, os líderes desta união eram descendentes de europeus. Em 1980, um programa de liberalização foi iniciado pela ditadura militar (forçado pela revolta popular) e a conferência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no Rio de Janeiro, foi um celebração de algumas liberdades possíveis. Eu vim para ouvir as discussões feministas. Um par de anos atrás, eu estava em São Paulo e tinha tido uma experiência decepcionante com feministas de lá. Eu esperava que esta vez fosse melhor.

Em São Paulo, entrevistei uma romancista e feminista eminente em sua casa. Ao chegar, a escritora abriu a porta e me levou para a sala de estar. No caminho passamos pela cozinha, onde sua empregada estava escutando transmissões

num pequeno rádio, depois de lavar a terminar os pratos de almoço. A escritora exigiu que ela desligasse o rádio e voltasse ao trabalho. Enquanto discutíamos o desenvolvimento do feminismo em São Paulo, a empregada interrompeu para perguntar se o chá era para ser servido na louça do dia-a-dia ou na louça de prata. A escritora, em um tom agudo e indignado, disse-lhe para usar a cabeça.

Em seguida, passei a encontrar um pequeno grupo feminista. Eu devo interromper aqui e acrescentar que a minha enunciação do Português (ensinada a mim por meus pais que receberam pouca educação formal) revela minhas origens de classe muito rapidamente. As feministas tentaram oferecer os seus conselhos de especialistas para mim. Eu insisti em um discurso mútuo e fui esnobada – rudemente.

No simpósio feminista SBPC, Pia Matarazzo falou. Na época , eu me lembro de feministas brasileiras brancas (não havia nenhum outro tipo visível) me avisando que eu tinha que apoiar Pia Matarazzo, uma mulher de negócios e altamente competente. Ela herdou o império de negócios de seu pai sobre as expectativas de seus irmãos. Meu pai era o motorista de seu pai. Durante o tempo em que meu pai trabalhava para ele, lembro-me que ele e minha mãe comeram um pouco de feijão, bastante arroz, alguns vegetais e nenhuma proteína. Minha irmã e eu dividimos um iogurte para o jantar. Houve problemas contínuos sobre como obter o suficiente para comer durante a nossa infância. Eu não entendia por que eu deveria apoiar Pia, que era ligada a estes problemas. Neste simpósio feminista não havia delegados indígenas ou negros. Uma jovem afro-brasileira da plateia, um estudante na universidade onde o evento SPBC foi realizado, falou com uma voz suave e nervosa para as mulheres de classe média euro-brasileiras, que eram as únicas representantes de mulheres do Brasil neste simpósio. A jovem afro-brasileira perguntou quantas delas tinham sido capazes de vir à reunião porque suas empregadas estavam cuidando de seus maridos e filhos – cozinhando os seus jantares e pegando seus filhos na escola? Ela perguntou por que essas mulheres não tinham sido convidados. Essas feministas nem sequer se incomodaram em responder. Nenhuma delas. A jovem afro-brasileira foi deixada lá pendurada naquele espaço muito público de fúria silenciosa e impotência. Se alguém tiver algum tempo e tiver acesso aos arquivos da SBPC no Rio de Janeiro e puder encontrar os nomes das mulheres que participaram deste simpósio, eu agradeceria.

A elite não desiste do seu poder. A “confusão” que surge no Brasil é que o discurso feminista europeu é a base para o desenvolvimento do feminismo e as mulheres que têm acesso a este discurso são mulheres altamente educadas

de origens privilegiadas. Até as coisas mudarem muito recentemente, devido à cota racial do governo nas universidades, as mulheres afro-brasileiras e especialmente as mulheres indígenas não tinham acesso às universidades. Nada disto é novo. Mas nos esquecemos de que as Américas são colonizados pela Europa. E isso muda a forma como devemos olhar para as discussões que podemos ter. Por causa da colonização, devemos apoiar as lutas indígenas nas Américas, em primeiro lugar. E porque somos feministas devemos apoiar em primeiro lugar as mulheres indígenas nas Américas. Durante a 29a Bienal de São Paulo (2010) eu apresentei o meu filme, Iracema (de Questembert). O trabalho apresenta uma personagem principal interpretada por Shirley Krenak, a jovem guerreira e líder de sua comunidade na Reserva Krenak em Resplendour, Minas Gerais. Eu perguntei se a Shirley poderia ser convidada para falar sobre a história do seu povo e suas lutas atuais durante os muitos painéis sobre diferentes questões realizadas na Bienal de São Paulo. Perguntei a uma jovem que era uma oficial da Bienal. Ela não estava interessada e Shirley não foi convidada e nunca foi convidada para uma conferência organizada pelos brasileiros não-indígenas, embora ela seja líder de seu povo e uma palestrante eloquente.

Devemos nos perguntar por que não há mulheres indígenas nas artes, ciências, negócios, etc. (eu tinha pensado em escrever “ mulheres indígenas em posições de poder”, mas o modelo extremamente tortuoso do racismo não reconhecido assegurou o fato de que os povos indígenas não tinham acesso à educação até recentemente. Então nós não estamos no nível de conversa para falar de posições de poder.) É importante nos perguntarmos se há mulheres indígenas a cada vez que vamos a um museu, a uma conferência, para uma exposição em uma galeria, ao consultório médico, para uma aula universitária. Sabemos que a elite feminista euro-brasileira não irá se perguntar isto. E pior, elas têm conspirado com o discurso do estado de exclusão que garante sua exclusividade de representação para fazer com que não questionemos essas coisas.

São elas que têm o “olho refrescado” e que podem olhar para a cultura “objetivamente”.

São elas que não são “racistas” e não veem quaisquer raças no Brasil.

São elas que estão continuamente canibalizando os indígenas e os afro- brasileiros enquanto apresentam-se aos brasileiros e ao mundo como brasileiros autênticos. Neste tipo narrativo os povos indígenas do Brasil são vistos mais como objetos do que como sujeitos. Como uma mulher euro-brasileira que

trabalha com os Ianomâmi disse uma vez: “Nossos índios não são como os da América do Norte;”, implicando a falta de capacidade intelectual. (Como aos povos indígenas brasileiros era, até há pouco tempo, deliberadamente negado o acesso ao ensino superior, os euro-brasileiros, em seguida, os comparam de forma desfavorável a seus primos norte-americanos que tiveram algumas oportunidades para ir à universidade. Também os povos indígenas da América do Norte têm sido nacional e internacionalmente organizados desde o início do século XX. Até recentemente, essas possibilidades haviam sido negadas aos povos indígenas brasileiros pelos próprios brasileiros). Esta euro-brasileira que trabalha com os Ianomâmi é também uma feminista respeitada.

As negações implacáveis da elite, seu discurso sobre complexidade e nuances são os jogos que eles foram ensinados a jogar em uma sociedade paternalista e racista que as feministas brancas aceitaram voluntariamente porque é aí que continua sua possibilidade de poder.

Na década de 1920, as possibilidades de perspectivas especificamente nativas ou negras foram subordinadas pela implantação da elite do conceito de canibalismo para que, 70 anos mais tarde, uma intelectual pudesse descaradamente dizer que “Nós” representamos todos.

O real “Nós “ foi um “ NÓS” financeiramente privilegiado pelos euro-brasileiros. Agora, há uma política oficial de inclusão pelo governo do Partido dos Trabalhadores. Isto está resultando em uma mudança no discurso de alguns membros da elite que já pensaram ser oportuno renunciar à sua “whitetude/ brancitude”; o que não é, neste momento, na moda e, ao mesmo tempo, não quer dizer abrir mão de nenhum dos privilégios que o acompanham.

Algumas têm de repente se tornado orgulhosamente mestiças, embora seus cabelos loiros e a pele clara não as impeça de entrar em galerias poderosas com seguranças afro-brasileiros na porta de entrada.

Uma artista euro-brasileira com um cargo de professor universitário de artes (nem preciso dizer que não existem pessoas indígenas que ocupam este cargo e eu duvido que exista um intelectual negro que o faça) recentemente me disse que ela não sabe de qual “cor” ela é. É muito fácil. Eu gostaria de ter a graça de uma resposta rápida: “Entre em uma boutique em seu bairro chique, entre em uma galeria no seu bairro e veja quantos afro-brasileiros você acha que estão fazendo a limpeza ou manutenção. A sua cor de pele não se reflete nos seus colegas da sua escola de arte? Quando você entre em um museu você tem

medo de um guarda te chamar em voz alta e dizer que você não é permitida, porque você não pertence ao lugar?” É assim que você sabe de que “cor” você é.

Raça no Brasil não pode ocupar uma posição secundária no feminismo, deve ser simultânea. Caso contrário, estaremos apoiando os canibais, os descendentes de europeus no poder socialmente e economicamente, que continuam a comandar o discurso enquanto negam as possibilidades de inclusão dos povos indígenas e afro-brasileiros desse mesmo discurso.

Maria Thereza Alves, Berlim, 7 de novembro 2013

http://www.forumpermanente.org/revista/numero-4/textos/canibalismo-no- brasil-desde-1500?searchterm=canibalismo+no+brasil

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