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A natureza específica ou pública da conservação da arte contemporânea e as funções dos museus de arte

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Kunihiko Aizawa

Tradução: Caetana Britto

English Version

Palavras-chave:

Arte contemporânea, conservação, museus de arte, natureza específica, esfera publica

 

Resumo

A especificidade da conservação da arte contemporânea inclui, por exemplo, a velocidade de deterioração dos materiais industriais modernos utilizados nas obras e a fragilidade ou diversidade das estruturas. Estes podem estar ligados à busca da natureza única na criação de obras de hoje. A natureza específica da conservação da arte contemporânea pode ter várias limitações. Essas limitações podem ser reformuladas como a dificuldade específica de preservar e manter obras de arte contemporâneas como propriedade pública. Penso que essas questões estão fortemente relacionadas com a consideração das funções de conservação, as coleções e as exposições dos museus de arte como espaço público. Neste artigo, darei uma visão geral em torno da natureza e do senso de coisa pública específicos da conservação da arte contemporânea e da função dos museus de arte para esse fim.

 

Abstract

The specific nature of conservation of contemporary art includes, for example, the speed of deterioration of modern industrial materials used in works and the fragility or diversity of structures. These might be linked with the pursuit of one-time-only nature in today’s creation of works. And also, the specific nature of the conservation of contemporary art could be various limitations. These limitations might be rephrased as the specific difficulty of preserving and maintaining contemporary art works as public property. For facing these issues, I think it is strongly related to considering the functions of conservation, collection and exhibits at art museums as a public place. In this article, I will give an overview around the specific nature and publicness on the conservation of contemporary art and the function of art museums for that purpose

 

 

É amplamente sabido que a deterioração e os danos em obras de arte contemporânea geralmente estão além do escopo dos métodos de restauração existentes, desenvolvidos para os bens culturais tradicionais, principalmente devido às suas propriedades materiais e estruturais. De modo similar, a eficácia da conservação preventiva também é extremamente limitada e os problemas geralmente começam logo após a criação do trabalho, o que significa que medidas paliativas temporárias, ou mesmo medidas de plena (drástica) restauração são frequentemente necessárias em um estágio muito inicial. A propósito, essas particularidades materiais, estruturais e técnicas podem ser vistas em obras não apenas de arte contemporânea, mas também de arte moderna, e nos bens culturais modernos e contemporâneos de maneira mais ampla. Do ponto de vista da conservação, mesmo que uma obra de arte seja moderna em termos de história da arte, nos casos em que os métodos convencionais de conservação não podem ser aplicados devido a tais características, pode -se dizer que o trabalho obriga à ou deve ser tratado como uma “obra moderna com elementos do tipo contemporâneo” em termos de materiais e estrutura (ou técnica) .1

 

A diversidade de materiais, formas e estruturas nas obras de arte contemporânea é sem dúvida derivada da "natureza única" e da diversidade dos tópicos, modos de representação ou expressão, argumentos, idéias e questões levantadas. A busca da natureza única na produção de uma obra de arte pode levar a uma crescente complexidade do trabalho em si e, portanto, há casos em que é um desafio até interpretar o que é o "original" de um trabalho. Mesmo se explicações e comentários sejam fornecidos quando da sua exibição, isso às vezes pode ter o efeito de exacerbar a percepção de que “a arte contemporânea é difícil de entender.” 2 Não é incomum que artistas modernos e contemporâneos evitem buscar a sustentabilidade de suas próprias obras e, de fato, isso também pode estar relacionado à "perseguição da natureza única". Sem dúvida, as obras de arte continuarão a ser criadas todos os dias, e sua diversidade crescerá no futuro. Ainda hoje, muitas vezes é difícil distinguir entre arte e não-arte, ou obras e não-obras.3 Deve-se notar que essas categorias parecem estar intimamente relacionadas ao estado atual da sociedade e ao mundo em que a arte contemporânea é criada.

 

Na sociedade atual, é produzida uma variedade infinita de coisas, mas parece que praticamente nada é feito para durar muito tempo. Se for esse o caso, então os museus, que têm a função de preservar coisas por longos períodos de tempo, devem ser considerados excepcionais agora mais do que nunca. Ou talvez o ponto esteja no fato de que as atividades de nossa sociedade atual, especialmente as atividades econômicas, estão inevitavelmente em desacordo com o processo ou conceito de preservação. Não apenas obras de arte ou bens culturais, mas todo tipo de coisas, frequentemente se perdem em um instante. Pode-se dizer também que qualquer que seja o objeto, uma mudança de estado ou transformação pode ocorrer mesmo com a passagem de um pequeno período de tempo. Coisas que resistem à passagem do tempo e são menos propensas a sofrer mudanças ou transformações podem ser limitadas a informações escritas ou impressas, como literatura, discursos, artigos e similares.

 

Martin Heidegger observou que Aquilo que é inconspícuo passa despercebido, e o trabalho de conservar obras de arte não é visível quando as obras são expostas e geralmente não é reconhecido. No entanto, o que se exige dos museus de hoje, ou seja, sua “natureza específica”, é que estes selecionem e adquiriram objetos como “ativos públicos” e os tornem acessíveis (visíveis) dando a conhecer a sua presença a todos, não apenas agora, mas também no futuro, e também que tenham mecanismos multifacetados para faze-lo, mesmo que sejam imperceptíveis.

 

No entanto, a arte contemporânea está sendo criada em todo o mundo neste exato momento. A era contemporânea é aquela em que qualquer um pode ser artista, usando produtos disponíveis em lojas de artigos para a casa, computadores, smartphones, internet e mídias sociais, e na qual o mundo está inundado de obras de arte e empreendimentos criativos que têm a propriedade da natureza única. Isso se aplica não apenas à arte e à expressão criativa, mas também a todos os bens culturais produzidos na era atual. Naturalmente, é impossível que os museus colecionem todos eles, e também é impossível conservá-los (ou mantê-los) todos. Ademais, o mundo está repleto de inúmeros outros objetos, para além de obras de arte e bens culturais, que devem ser protegidos e mantidos. É por isso que é importante perguntar: “O que os museus devem selecionar?” Isso talvez possa ser reformulado, observando que os museus têm uma grande responsabilidade e poder através dos atos de adquirir, exibir e conservar objetos. Por exemplo, quando um museu adquire e exibe obras de arte contemporânea, os bens culturais, incluindo as obras de arte selecionadas, inevitavelmente ou automaticamente se tornam “propriedade pública”. Uma das características únicas de um museu de arte é que ele é especializado em “belas artes” ou, mais amplamente, em “arte”. As obras de arte selecionadas pelo museu muitas vezes têm, desde o momento em que são criadas, a intenção (ou expectativa) de serem adquiridas e exibidas por museus. E no entanto, esse fenômeno é fundamentalmente estranho aos museus que não sejam museus de arte, e isso pode ser chamado de parte da natureza específica dos museus de arte. Edward Said comentou sobre “a preservação da palavra escrita ou impressa” e “a possibilidade de que essa preservação possa levar à exclusão de outra coisa (através da violência)”, o que também pode se aplicar aos museus em geral e às várias “seleções” feitas por museus de arte em particular.5

A natureza específica da conservação das obras de arte contemporânea pode ser descrita pelo fato de os métodos e opções de tratamento das mesmas serem severamente restritos em razão das várias limitações das próprias obras e dos seus ambientes circundantes, incluindo aqueles dos museus de arte. A seguir, uma lista aproximada das limitações inerentes às obras de arte contemporânea, incluindo as mencionadas acima: uma obra pode ser material e estruturalmente frágil e, consequentemente, ter uma vida útil curta. Portanto, às vezes é difícil aplicar o princípio da reversibilidade aos procedimentos de restauração. Mais fundamentalmente, os artistas não necessariamente fazem da sustentabilidade de seu trabalho uma prioridade. As formas e estados (conceitos) das obras de arte são diversos, e uma maior diversificação trará maiores limitações. Por exemplo, o uso de barreiras ou caixas plásticas para proteger as obras ao exibi-las pode interferir significativamente na própria obra. Para começar, muitas obras são muito difíceis de exibir, manusear, desembalar e transportar. Some-se à isso, a eventual dificuldade de obter equipamentos ou substituir partes da obra de arte devido às atualizações de modelos dos produtos e, para piorar, o ciclo de atualizações de modelos está se tornando cada vez mais curto. Além disso, é difícil garantir espaço de armazenamento para obras e equipamentos periféricos. Há limitações no uso da linguagem para interpretar um trabalho e limitações no diálogo ou discussão, incluindo entrevistas destinadas a obter informações, realizar pesquisas e discutir procedimentos. E mais além disso, muitas vezes é difícil até mesmo interpretar a “natureza única” ou originalidade do trabalho. A reputação de uma obra ou de um artista nem sempre está estabelecida. Ainda há poucas pesquisas sobre a conservação da arte contemporânea e a história dessas pesquisas é extremamente curta. Existem limitações de orçamento, mão de obra e tempo disponível para conservação em geral e áreas afins. Subjacente a isso está o fato de que nem a arte contemporânea em si nem sua conservação são facilmente reconhecidas ou compreendidas pela sociedade.

 

Com tantas limitações, na maioria das vezes não apenas uma mas várias limitações (às vezes todas) simultaneamente, afetam os casos individuais a serem abordados, situação em que as restrições se tornam mais severas. Por exemplo, nos casos que tratei até agora, lidei com várias restrições e limitações da melhor maneira possível, mas nem todos os problemas foram resolvidos. Se fosse possível olhar ao redor do mundo em busca de exemplos de práticas de conservação de arte contemporânea, imagino que outros igualmente enfrentam limitações, mesmo que as especificidades sejam diferentes e não consigam alcançar soluções fundamentais.

 

Considerando a busca da natureza única como uma das principais características da arte contemporânea, a diversidade que a acompanha e uma ainda maior diversificação no futuro, bem como a realidade das várias limitações ou aspectos únicos da conservação da arte contemporânea, é difícil estabelecer as “diretrizes” universais, ou ainda, “princípios” distensionados para a conservação de obras de arte contemporânea. Se existissem, representariam o risco de restaurações excessivas ou desnecessárias que alterariam fundamentalmente a natureza do trabalho. A afirmação de Max Jakob Friedländer de que “a restauração é um mal necessário” pode ser ainda mais precisa e importante no que diz respeito à conservação da arte contemporânea. Por outro lado, ao praticar a conservação de arte contemporânea, devemos inevitavelmente trabalhar para o desenvolvimento de novos métodos práticos, ao mesmo tempo em que nos baseamos em exemplos de conservação do patrimônio cultural tradicional e em informações de outros campos. Por exemplo, no caso da conservação da (chamada) time based media1, é provável que existam soluções alternativas que fazem uso de várias tecnologias atualizadas. Há sempre o risco de desvios sutis da “natureza única” ou originalidade; portanto, mesmo que existam soluções alternativas potencialmente similares, é importante ter a capacidade de adiar teporariamente e esperar pela emergência de métodos ou tecnologias melhores, ou dedicar um tempo para constanetemente desenvolvê-las por si mesmo, em outras palavras, “desistir” momentâneamente.

 

Assim como foi no passado – muitas vezes comparado alegoricamente ao navio de Teseu – continuará a haver um número significativo de tentativas de reproduzir, recriar, re-executar ou mesmo substituir parcialmente objetos perdidos para para preservar sua existência, e esse número pode crescer. No entanto, como dito anteriormente, as obras de arte contemporânea muitas vezes têm como premissa fundamental a “natureza única”, que envolve uma complexa teia de representações, expressões, afirmações, propostas e questões que não podem ser colocadas em palavras pelos criadores. Correndo o risco de soar doutrinário, acredito que o respeito excessivo por essa natureza única pode estar em desacordo com a reprodução, recriação, reencenação ou manutenção de obras por meio da substituição de alguns elementos. É claro que não há duas coisas no mundo iguais. Por exemplo, mesmo que existam vários produtos industriais com o mesmo número de peça ou número de modelo, ou dados digitais idênticos, cada um é de “natureza única” no sentido estrito da palavra e nunca poderão ser exatamente o mesmo. No entanto, as coisas podem ser substituídas se reconhecermos as substituições como essencialmente as mesmas coisas. Nossa percepção de natureza única ou insubstituível, por exemplo, pode ser derivada do fato de que algo é “arte” ou, mais amplamente, “expressão” ou “representação” enraizada na individualidade humana. Em caso afirmativo, isso pode estar relacionado à dificuldade e à natureza específica (ou limitações específicas) da conservação de obras de arte.

 

Mesmo quando nos deparamos com alguma questão ou problema e existem algumas limitações que nos obrigam a desistir (e pode não existir nada completamente sem limitações), algo ser limitado não é sinônimo de ser impossível, e no nosso trabalho diário estamos testando essas limitações e vendo o que é possível. Como uma das premissas desta abordagem, e uma das atividades básicas necessárias para compreender as limitações, é essencial a análise multifacetada e detalhada aplicada à prática de cada indivíduo e à elaboração de planos preliminares. Na prática da conservação de arte contemporânea – que pode se dizer, tem uma diversidade ilimitada – à luz da escassez de precedentes e da história global extremamente curta da conservação neste campo, a singularidade ou natureza única de cada obra vem à tona, e nem sempre é fácil classificar as obras por técnica, material, forma, campo (ou região) ou época. Portanto, mesmo que existam exemplos que sejam úteis como referências, eles não necessariamente serão totalmente úteis em outros casos. Por esta razão, é extremamente importante examinar e considerar os trabalhos (ou questões) que enfrentamos caso a caso, referindo-nos a vários exemplos. Além disso, provavelmente não é suficiente simplesmente pesar “arte contemporânea”, “conservação” e “museus de arte” no contexto da atual “conservação de obras de arte contemporânea”, sendo essencial considerar a questão de múltiplas perspectivas, de forma abrangente e interdisciplinar. Isso poderia levar a uma ligação e sinergia entre as “teorias específicas” de estudos individuais e as “teorias gerais” de estudos abrangentes.

 

Esta é apenas minha opinião pessoal, mas ao pensarmos em arte contemporânea, conservação e museus de arte, é vital manter sempre em mente o conceito de “bem público” ou “esfera pública” como um ponto crucial que apoie e reforçe o nosso pensamento sobre essas questões. Isso porque as obras de arte contemporânea, como patrimônio público, são de suma importância pelo menos em termos de sua natureza única (diversidade ou singularidade) e “publica”. Para que os museus de arte exibam, adquiram, documentem, pesquisem ou conservem essas obras e façam as seleções necessárias, isso implica inegavelmente em estar envolvido no domínio público (sociedade ou mundo) de forma contínua ou de longo prazo, respeitando ao mesmo tempo a originalidade insubstituível, a natureza única e a natureza específica desses bens públicos.7

 

Tradução para o inglês: Christopher Stephens

Tradução para o português Caetana Britto

 

 

 

Notas

 

1. O autor discutiu a conservação da arte contemporânea em vários textos anteriores, incluindo “Gendai bijutsu to hozon shufuku,” Bunkazai no hozon to shufuku 15 Nihon ni okeru seiyoga no hozon shufuku, Japan Society for the Conservation of Cultural Property, eds. , Kubapro, 2013; “Gendai bijutsu sakuhin no hozon shufuku ni okeru kadai to genkai: Yoshimura Masunobu Buta・Pig Lib; no shufuku jirei yori,” Hyogo kenritsu bijutsukan kiyo no. 13, 2019; “Gendai bijutsu sakuhin mata wa bunkazai no kokyosei to museum no hozon no kino,” Kacchu no kaibojutsu: Isho to engineering no bigaku, 21st Century Museum of Contemporary Art, Kanazawa, eds., Bijutsu Shuppan-sha, 2022. This paper is an extension of those previous texts.

2. SATO, Doshin, Nihon Bijutsu Tanjo, Chikuma Gakugei Bunko, 2021, pp. 31-33.

3. BOURDIEU, P., A. Darbel et D. Scnapper, L’amour de l’art: Les musées d’art européens et leur public, Les Éditions de Minuit, 1969; Duncan, C., Civilizing Rituals: Inside Public Art Museums, Routledge, 1995; Clifford, J., The Predicament of Culture Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art, Harvard University Press, 1988, pp. 187-252.

4. HEIDEGGER, M., Gesamtausgabe I. Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1910-1976 Band 7 Vortage und aufsatze, Vittorio Klosterman, 2000, p. 60.

5. SAID, E. W., Beginnings: Intention and Method, Granta Books, 2012, pp. 197, 310.

6. FRIEDLANDER, M. J., Von Kunst Und Kennerschaft, Ullstein Bücher, 1955, pp. 164-165

7. With regard to “publicness,” "one-time-only nature", and “specific nature,” here reference was primarily made to ARENDT, H., Vita activa oder vom tätingen leben, Piper, 2002; ARENDT, H., The Human Condition, The University of Chicago Press, 1998; SAITO Junichi, KOKYOSEI, Iwanami Shoten, 2000; SAITO Junichi, JIYU, Iwanami Shoten, 2005; SENNETT, R., The Fall of Public Man, W. W. Norton & Company, 2017; Sen, A., Inequality Reexamined, Harvard University Press, 1995; and Said, E. W., Representations of the Intellectual, Vintage Books, 1996, pp. 11-13.

 

1 Literalmene “mídia baseada no tempo”.

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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