Você está aqui: Página Inicial / Revista / Periódico Permanente 10 / Textos em Html / Apresentando o Projeto

Apresentando o Projeto

Sumário | Versão PDF

 

Boris Groys

Tradução: Fórum Permanente

Texto original em inglês/ original text in English

Falando sobre arte contemporânea temos, antes de mais nada, que nos perguntar: O que significa ser contemporâneo? A arte moderna é (ou, melhor, foi) voltada para o futuro. Ser moderno significa viver em um projeto, praticar um trabalho em processo. Por causa desse movimento permanente em direção ao futuro, a arte moderna tende a negligenciar, a esquecer o presente, a reduzi-lo permanentemente a um modesto momento de transição do passado para o futuro. O discurso pós-moderno e a arte tentaram evitar essa discrição do presente, apresentando o Projeto Moderno como concluído, como já realizado – e focar na crítica a esse Projeto e suas consequências. Mas ao relegar o Projeto Moderno ao passado, a arte pós-moderna perde novamente o presente.

Parece-me que os artistas contemporâneos que tentam ser genuinamente contemporâneos ainda vêem o Projeto Moderno como um Projeto não concretizado, não realizado e em andamento. Mas, em relação a este Projeto, assim como a qualquer outro projeto, eles concentram a sua atenção mais no seu contexto, nas condições de sua realização do que no próprio projeto. Através da pesquisa e documentação do contexto dos projetos modernos, incluindo seus próprios projetos artísticos, estes artistas desviam a nossa atenção do objetivo do projeto para as condições atuais de sua realização. Assim, ocorre a mudança da produção artística tradicional para a documentação artística. Esses artistas utilizam cada vez mais em sua prática os meios típicos de cobertura midiática. E eles também utilizam cada vez mais a instalação como uma forma de arte que dá a possibilidade de demonstrar uma cena de concepção e realização do projeto.

Além disso, o espaço de instalação é temporário – não é um museu do passado, nem o futuro Reino da Luz. Em certo sentido, a questão da estética da arte contemporânea e a questão da estética da instalação são questões idênticas.

A vida moderna é a vida em um projeto que se orienta para o futuro – seja ele entendido como progresso tecnológico, melhoria econômica ou utopia política. A formulação de diversos projetos tornou-se agora a maior preocupação do homem contemporâneo. Hoje em dia, qualquer que seja o esforço empreendido no campo econômico, político ou cultural, é preciso primeiro formular um projeto adequado para submeter à aprovação oficial ou financiamento do projeto junto a uma ou várias autoridades públicas. Se este projeto na sua forma original for rejeitado, ele é então modificado na tentativa de melhorar as suas chances de ser aceito. Se o projeto revisado for descartado, a única alternativa é propor um projeto inteiramente novo em seu lugar. Desta forma, todos os membros de nossa sociedade estão constantemente preocupados em conceber, discutir e rejeitar uma série interminável de projetos. Avaliações são escritas, orçamentos meticulosamente calculados, comissões montadas, comitês nomeados e resoluções apresentadas. Um número considerável de nossos contemporâneos passa seu tempo apenas lendo propostas, avaliações e orçamentos dessa natureza. A maioria destes projetos permanece para sempre irrealizados. Basta que um ou outro assessor informe que um projeto não é promissor, que é difícil de financiar ou simplesmente indesejável, e todo o trabalho investido em sua formulação terá sido uma perda de tempo.

Desnecessário dizer que o grau de trabalho investido na apresentação de um projeto é bastante considerável – e torna-se cada vez mais trabalhoso à medida que o tempo avança. Os projetos submetidos a vários júris, comissões e órgãos públicos são embalados em um design cada vez mais elaborado e formulados com cada vez mais detalhes, objetivando impressionar adequadamente seus potenciais avaliadores. Desta forma, este tipo de formulação de projetos evolui para uma forma de arte por si mesma, cujo significado para nossa sociedade ainda é muito pouco reconhecido. Pois, independentemente de ser ou não realmente realizado, cada projeto representa, de fato, um rascunho para uma visão particular do futuro que pode ser fascinante e instrutiva. No entanto, a maioria dos projetos que a nossa civilização está incessantemente gerando frequentemente desaparecem ou são simplesmente descartados depois de terem sido rejeitados. Este tratamento culposamente negligente do projeto como uma forma de arte é realmente muito lamentável, pois nos impede de analisar e compreender as esperanças e visões de futuro que foram investidas nesses projetos – e que podem oferecer uma visão de nossa sociedade maior do que qualquer outra coisa. Este certamente não é o contexto apropriado para se realizar uma análise sociológica dos projetos contemporâneos. Mas a pergunta que se deve fazer neste momento é que esperanças estão ligadas ao projeto como tal? Ou, por que as pessoas querem fazer um projeto, em vez de apenas viver em um futuro não restrito por projetos?

A seguinte resposta pode ser dada a esta pergunta: acima de tudo, cada projeto permite ao seu autor adquirir um status socialmente sancionado e representado de solidão. Isso pode parecer paradoxal, à primeira vista, porque todo projeto é social em sua natureza. Mas todo projeto faz uma distinção entre o tempo de sua realização, o momento de apresentação de seu resultado e o tempo após esta apresentação. Agora, o tempo de realização do projeto é um tempo muito pessoal – um tempo de reclusão e reflexão. Pode ser uma reclusão individual ou em grupo, reclusão coletiva se um determinado projeto envolve a colaboração de muitos indivíduos. Mas, em qualquer caso, certo auto-isolamento de um contexto social maior é condição necessária para a realização de qualquer projeto. E esse tipo de auto-isolamento é totalmente apreciado e respeitado pela sociedade.

Sob as condições prevalecentes da vida diária, os indivíduos que não estão preparados para entrar em comunicação a qualquer momento com seus semelhantes são classificados como difíceis, anti-sociais e hostis, e estão sujeitos à censura social. Mas essa situação sofre uma mudança radical no momento em que alguém pode apresentar um projeto individual socialmente sancionado como motivo de seu auto-isolamento e renúncia a qualquer forma de comunicação. Todos nós entendemos que quando alguém tem que realizar um projeto, ele está sob imensa pressão de tempo que não lhe deixa tempo para mais nada. É comumente aceito que escrever um livro, preparar uma exposição ou se esforçar para fazer uma descoberta científica são projetos que exigem que o indivíduo evite o contato social, descomunique, quando não se excomungue a si mesmo – ainda que não seja automaticamente julgado uma pessoa má. O aceitável paradoxo sobre isso é que quanto mais tempo o projeto dispor para ser realizado, maior será a pressão de tempo a que estará sujeito. Muitos projetos aprovados no âmbito do mundo artístico contemporâneo estão programados para terem uma duração máxima de cinco anos. Em troca, após esse período limitado de isolamento, espera-se que o indivíduo apresente um produto acabado e regresse a desgastante comunicação social – pelo menos até o momento, possivelmente, quando ele ou ela submeta outra proposta de projeto. Na verdade, juntamente com o resultado do projeto, espera-se que o indivíduo – ou grupo – apresente uma documentação que comprove como utilizou o tempo que lhe foi concedido para a realização do projeto. Mas essa documentação não é tão importante em comparação com o resultado do projeto. O resultado, o produto do projeto, demonstra por si só o trabalho acumulado neste produto. A vida dos autores e participantes do projeto que ocorreu durante sua realização é apagada pelo produto deste projeto. Ele permanece socialmente relevante apenas na esfera privada.

Mas o que se pode dizer sobre os projetos que podem preocupar uma pessoa por toda a sua vida? E quanto aos projetos que têm a própria vida como único produto? Agora, os projetos mais interessantes da arte moderna e contemporânea são precisamente estes: Os que querem manifestar a vida como tal – além de qualquer razão, objetivo, justificativa, instrumentalidade, utilidade etc. Começando com Malevich ou os artistas do movimento Dada como Hugo Ball ou Tristan Tzara , somos confrontados com os projetos que querem ser tão infinitos e tão não-utilitários como a própria vida. Malevich fala da vida que simplesmente acontece – além de qualquer razão e objetivo – e formula o projeto artístico para mostrar a vida precisamente como processo autônomo, incontrolável e potencialmente infinito. Malevich está pronto para defender essa noção de vida autônoma contra qualquer instrumentalização – mesmo contra a instrumentalização pelos projetos de libertação política ou econômica. É possível citar várias declarações comparáveis ​​de diferentes artistas da vanguarda histórica. Frequentemente tende-se a falar a respeito da autonomia da arte – e a autonomia da arte é então confrontada com a exigência de superar essa autonomia, de dar vida à arte. Malevich - como também outros artistas da vanguarda radical - nunca fala sobre a autonomia da arte. Ele fala apenas sobre a autonomia da vida – e a arte é para ele apenas um meio para manifestar essa autonomia da vida. Somos confrontados aqui com a vida que coincide com o projeto que tem a vida em si mesma como objetivo.

Parece-me que este projeto deve ser levado a sério porque é repetido várias vezes na arte do Século 20 por diferentes artistas e de muitas maneiras diferentes. E eu diria que a arte de Lygia Clark é, para mim, também um exemplo de tal projeto radical. Agora, é óbvio que não faz sentido exigir que este tipo de projeto de arte seja trazido à vida – porque já é vida. Mas aqui surge uma questão diferente: como trazer esse tipo de projeto de vida para a arte – para o contexto da arte, para o espaço da arte? Neste caso não podemos falar de uma obra de arte como produto final deste projeto – um produto que resume todo o trabalho que foi investido neste projeto e que pode ser exposto e trazido para o campo da comunicação social após a reclusão da vida no projeto, estar finalizada. Fica-se diante de uma vida que parece ser irremediavelmente privada porque não produziu nenhum resultado – de modo que sua documentação e representação no espaço da arte parece ser fundamentalmente questionável, deficiente, inadequada. Devo dizer, nesse ponto, que não compartilho dessas reservas – e tentarei explicar o porquê.

Como tentei mostrar, é precisamente o produto da vida enquanto resultado do projeto que divide a vida em, digamos, vida pura e trabalho, privada e social, comunicável e incomunicável. Tudo o que entrou no produto e foi resumido pelo produto é, por definição, trabalho. Tudo o que ficou fora do produto é pura vida que não é e não pode ser comunicada – pura vida porque foi pura e definitivamente perdida em termos de projeto. Essa vida pura e definitivamente perdida é irrecuperável, não representável, de fato. Mas se o projeto for entendido como tendo a vitalidade como seu único objetivo, então a situação muda. Neste caso não temos mais um produto, um resultado – e isso significa que toda a vida se torna idêntica ao projeto e à sua representação. Tal vida não tem mais perda, nem descanso irrecuperável, irrepresentável, nem parte privada. Temos aqui a vida idêntica à sua documentação. Este tipo de projeto tem apenas um significado: apagar a diferença entre a vida interior e a vida exterior, entre a vida e o trabalho, entre o privado e o social. Podemos dizer: Tal projeto de vida é, desde o início, uma comunicação. Mas ele esta se comunicando somente com ele mesmo – ou, para dizer de outra forma, ele está comunicando sua própria descomunicação. A vida é, como já indiquei, entendida pela arte radical do Século 20 como algo que escapa a qualquer descrição, classificação e utilização. Assim, comunicar a vida é comunicar a des-comunicação, documentar a inadequação de qualquer documentação etc.

O processo de modernização é frequentemente entendido como a expansão constante da comunicação, como um processo de secularização progressiva que esvazia todos os estados de solidão, auto-isolamento, vida puramente interior. A modernização é vista como a emergência de uma nova sociedade de inclusão total que exclui todas as formas de exclusividade. Mas, como já mencionado, cada projeto equivale, antes de tudo, a uma proclamação e estabelecimento de reclusão e auto-isolamento. Isto confere à modernidade um status ambivalente. Por um lado, promove uma compulsão pela comunicação total e pela contemporaneidade coletiva total, enquanto por outro, gera constantemente novos projetos que terminam repetidamente na reconquista do isolamento radical. Cada projeto é, antes de tudo, a declaração de outro, de um novo futuro que se supõe que surja uma vez que o projeto passado tenha sido executado. Mas a fim de induzir um novo futuro, é preciso primeiro tirar um período de licença ou ausência para si mesmo, com o qual o projeto transferiu seu agente para um estado paralelo de tempo heterogêneo. Esse outro período de tempo, por sua vez, é desvinculado do tempo vivenciado pela sociedade – é dessincronizado. A vida da sociedade prossegue assim mesmo - o curso normal das coisas permanece desimpedido. Mas despercebidamente em algum lugar além desse fluxo geral de tempo, alguém começou a trabalhar em outro projeto. Ele está escrevendo um livro, preparando uma exposição ou planejando um assassinato espetacular. E ele está fazendo isso na esperança de que uma vez que o livro seja publicado, a exposição aberta ou o assassinato realizado, o curso geral das coisas mudará e toda humanidade será legada a um futuro diferente – o próprio futuro que, na verdade, este projeto antecipou e aspirou. Em outras palavras, à primeira vista, todo projeto parece prosperar apenas na esperança de sua ressincronização com o andamento geral das coisas. O projeto é considerado um sucesso se essa ressincronização conseguir conduzir as coisas na direção desejada. E é considerado um fracasso se o andamento das coisas não for afetado pela realização do projeto. No entanto, o sucesso e o fracasso do projeto têm uma coisa em comum: ambos os resultados encerram o projeto e ambos levam à ressincronização do estado paralelo do projeto de tempo com o curso geral das coisas. E, em ambos os casos, essa ressincronização causa familiarmente um mal-estar, até mesmo provocando desânimo. Quer um projeto termine em sucesso ou fracasso, em ambos os casos, o que é sentido como angustiante é a perda dessa existência no tempo paralelo, o abandono de uma vida para além do funcionamento geral das coisas.

Se alguém tem um projeto – ou, mais precisamente, está vivendo em um projeto – ele já está sempre no futuro. Está trabalhando em algo que (ainda) não pode ser mostrado aos outros, que permanece oculto e incomunicável. O projeto permite emigrar do presente para um futuro virtual, causando uma ruptura temporal entre si e todos os outros, pois eles ainda não chegaram a esse futuro e ainda estão esperando que o futuro aconteça. Mas o autor do projeto já sabe como será o futuro, pois seu projeto nada mais é do que uma descrição desse futuro. A razão principal, aliás, porque o processo de aprovação de um projeto é tão desagradável para o autor do projeto é que, no estágio inicial de sua submissão, ele já está sendo solicitado a fornecer uma descrição meticulosamente detalhada de como esse futuro será realizado e qual será o seu resultado. Se o autor se mostrar incapaz de fazê-lo, seu projeto será devolvido e o financiamento recusado. No entanto, se ele de fato conseguir entregar a descrição precisa estipulada, ele eliminará essa mesma distância entre ele e os outros que constitui todo o apelo de seu projeto. Se todos souberem desde o início qual será o rumo provável do projeto e qual será seu resultado, então o futuro já não será mais uma surpresa para eles. Com isso, porém, o projeto perde seu propósito inerente. Para o autor do projeto, entretanto, tudo no aqui e agora não tem nenhuma importância, pois ele já está vivendo no futuro e vê o presente como algo que tem que ser superado, abolido ou pelo menos mudado. É por isso que ele não vê razão para se justificar ou para se comunicar com o presente. Muito pelo contrário, é o presente que precisa se justificar para o futuro que foi anunciado no projeto. É justamente esse intervalo de tempo, a preciosa oportunidade de olhar o presente a partir do futuro, que torna a vida vivida no projeto tão atraente para seu autor – e, inversamente, que torna a execução do projeto, em última análise, tão perturbadora. Assim, aos olhos de qualquer autor de um projeto, os projetos mais agradáveis ​​são aqueles que, desde o início, são concebidos para nunca serem concluídos, uma vez que estes são os mais propensos a manter a lacuna entre o futuro e o presente por um período de tempo não especificado. Tais projetos nunca são realizados, nunca geram um resultado final, nunca trazem um produto final. Mas isso não quer dizer, de forma alguma, que tais projetos inacabados e incompletos ​​sejam totalmente excluídos da representação social, mesmo que nunca se espere que eles efetuem uma ressincronização com o funcionamento geral das coisas através de algum tipo de resultado específico, bem-sucedido ou não. Estes tipos de projetos podem, afinal de contas, ser documentados.

Sartre certa vez descreveu o estado de “estar no projeto” como a condição ontológica da existência humana. Segundo Sartre, cada pessoa vive a partir da perspectiva de seu próprio futuro individual que, por força, permanece vedado da visão dos outros. Nos termos de Sartre, essa condição resulta na alienação radical de cada indivíduo, uma vez que todos os outros só podem vê-lo como o produto final de suas circunstâncias pessoais, mas nunca como um projeto heterogêneo dessas circunstâncias. Consequentemente, a estrutura temporal paralela heterogênea do projeto permanece indefinível para qualquer forma de representação no presente. Assim, para Sartre, o projeto está maculado pela suspeita de escapismo, evitação deliberada de comunicação social e responsabilidade individual. Portanto, não é surpresa que Sartre também descreva a condição ontológica do sujeito como um estado de “mauvaise foi” ou insinceridade. E por esta razão o herói existencial da proveniência Sartreana é perenemente tentado a fechar a brecha entre o tempo de seu projeto e o do andamento geral das coisas através de uma violenta “action directe” e assim, mesmo que apenas por um breve momento, sincronizar ambos os tempos. Mas enquanto o tempo heterogêneo do projeto não possa levar a uma conclusão, ele pode, como observado anteriormente, ser documentado. Poder-se-ia até afirmar que a arte nada mais é que documentação e representação desse tempo heterogêneo baseado no projeto. Há muito tempo isso significava documentar a história divina como um projeto de redenção do mundo. Hoje em dia trata-se de projetos individuais e coletivos para diversos futuros. De toda forma, a documentação da arte agora concede a todos os projetos não realizados ou irrealizáveis ​​um lugar no presente sem forçá-los a ser um sucesso ou um fracasso. Nestes termos, os próprios escritos de Sartre também poderiam ser considerados uma documentação deste tipo.

Precisamente esta ambivalência é demonstrada e radicalizada pelos vários projetos da arte do Século 20. Cada projeto demonstra uma inevitável lacuna de tempo, uma dessincronização radical entre si e o tempo de vida da sociedade. É por isso que as linguagens da vanguarda – também as linguagens visuais – estão predominantemente comunicando a descomunicação. Essas linguagens não querem ser compreensíveis – ao contrário, elas transmitirão a ruptura da comunicação. Esses projetos não querem unir privado e social, vida e trabalho, forma e conteúdo. Pelo contrário, eles mostram que tal unidade só pode ser uma unidade paradoxal de contradições que só podem se comunicar através da impossibilidade de comunicação. Nesse sentido, documentar esses projetos como impossíveis de documentar é justamente permanecer fiel à sua intenção inicial. No caso da vanguarda clássica pode haver ainda uma certa ambivalência a este respeito, porque de uma forma ou de outra a vanguarda clássica ainda produz obras de arte.

Nas últimas duas décadas, o projeto de arte – em vez da obra de arte – tem sem dúvida ocupado o centro das atenções do mundo da arte. Cada projeto de arte pode pressupor a formulação de um objetivo específico e de uma estratégia concebida para atingir esse objetivo, mas esse objetivo é geralmente formulado de tal forma que nos sejam negados os critérios que nos permitiriam verificar se o objetivo do projeto foi ou não alcançado, se é necessário o tempo excessivo para atingir o seu objetivo ou mesmo se o objetivo é, como tal, intrinsecamente inalcançável. Nossa atenção é, assim, desviada da produção de uma obra (incluindo uma obra de arte) para a vida no projeto de arte – vida que não é principalmente um processo produtivo, que não é adaptada ao desenvolvimento de um produto, que não é “orientada para resultados”. Nesses termos, a arte já não é mais entendida como produção de obras de arte, mas como documentação da vida-no-projeto – independentemente do resultado que a vida em questão tenha ou supostamente tenha tido. Isso claramente tem um efeito na forma como a arte é agora definida. Hoje em dia a arte não se manifesta mais como outro, novo objeto de contemplação que foi produzido pelo artista mas, como outro, tempo heterogêneo do projeto de arte, que é documentado como tal.

Uma obra de arte é tradicionalmente entendida como algo que incorpora totalmente a arte, conferindo-lhe imediatismo e presença visível e palpável. Quando vamos a uma exposição de arte, geralmente assumimos o que quer que esteja exposto – pinturas, esculturas, desenhos, fotografias, vídeos, ready-mades ou instalações – deve ser arte. As obras podem, naturalmente, de uma forma ou de outra, fazer referências a coisas que elas não são, talvez a objetos do mundo real ou a certas questões políticas, mas não fazem alusão à arte em si, porque elas mesmas são arte. No entanto, essa suposição tradicional que define visitas a exposições e museus tem se mostrado progressivamente errônea. Além das obras de arte, nos espaços artísticos atuais, somos agora, cada vez mais, confrontados com a documentação artística sob várias formas. Da mesma forma, aqui também vemos pinturas, desenhos, fotografias, vídeos, textos e instalações – em outras palavras, as mesmas formas e mídia nos quais a arte é comumente apresentada. Mas quando se trata de documentação de arte, a arte não é mais apresentada através dessas mídias, mas simplesmente documentada. A documentação de arte é per definitionem não arte. Justamente por meramente se referir à arte, a documentação de arte deixa bem claro que a própria arte não está mais à mão e instantaneamente visível mas, ao contrário, ausente e oculta.

A documentação da arte sinaliza, assim, a tentativa de usar mídias artísticas dentro dos espaços artísticos para fazer referência direta à própria vida, em outras palavras, a uma forma de pura atividade ou pura práxis, por assim dizer – na verdade, uma referência à vida no projeto artístico – ainda que sem querer representá-lo diretamente. Aqui, a arte é transformada num modo de vida, em que a obra de arte é tornada não-arte, mas mera documentação deste modo de vida. Ou, posto em termos diferentes, a arte está se tornando biopolítica porque começou a produzir e documentar a própria vida como pura atividade por meios artísticos. Não só isso, mas a documentação artística só poderia ter evoluído sob as condições de nossa era biopolítica, na qual a própria vida se tornou objeto de criatividade técnica e artística. Assim, mais uma vez, somos confrontados com a questão da relação entre vida e arte – mas em uma constelação completamente nova, que é caracterizada pelo paradoxo da arte na forma de projeto artístico agora também querendo se tornar vida, em vez de, digamos, simplesmente reproduzindo a vida ou fornecendo-lhe produtos de arte. Mas a questão convencional que vem à mente é até que ponto a documentação, incluindo a documentação artística, pode realmente representar a própria vida?

Toda a documentação está sob suspeita geral de inexoravelmente adulterar a vida. Para cada ato de documentação e arquivamento pressupõe uma certa escolha de coisas e circunstâncias. No entanto, tal seleção é determinada por critérios e valores que são sempre questionáveis, e necessariamente permanecem assim. Além disso, o processo de documentar algo sempre abre uma disparidade entre o próprio documento e os eventos documentados, uma divergência que não pode ser superada nem apagada. Mas mesmo que conseguíssemos desenvolver um procedimento capaz de reproduzir a vida em sua totalidade e com total autenticidade, acabaríamos de novo não com a vida em si, mas com a máscara mortuária da vida, pois é a própria singularidade da vida que constitui sua vitalidade. É por esta razão que a nossa cultura hoje é marcada por um profundo mal-estar em relação à documentação e ao arquivo – e até mesmo por protestos ruidosos contra o arquivo e em nome da vida. Os arquivistas e burocratas encarregados da documentação são normalmente considerados como inimigos da verdadeira vida, preferindo a compilação e administração de documentos mortos em detrimento da experiência direta da vida. Em particular, o burocrata é visto como um agente da morte que exerce o poder arrepiante da documentação para tornar a vida cinzenta, monótona, sem grandes incidentes e apáticas – em resumo, semelhante à morte. Da mesma forma, uma vez que o artista também começa a se envolver com a documentação, ele corre o risco de ser associado ao burocrata, sob suspeita de ser um novo agente da morte.

Como sabemos, porém, a documentação burocrática armazenada nos arquivos não consiste apenas em memórias registradas, mas também inclui projetos e planos direcionados não ao passado, mas ao futuro. Esses arquivos de projetos contêm rascunhos para a vida que ainda não aconteceu, mas que talvez sejam destinados ao futuro. E o que isso significa em nossa própria era biopolítica não é apenas fazer mudanças nas condições fundamentais da vida, mas engajar-se ativamente na produção da própria vida. A biopolítica é frequentemente confundida com as estratégias científicas e tecnológicas de manipulação genética que, pelo menos teoricamente, visam remodelar os seres vivos individuais. Em vez disso, a verdadeira realização da tecnologia biopolítica tem muito mais a ver com moldar a própria longevidade– com a organização da vida como um evento, como pura atividade que ocorre no tempo. Desde a procriação e provisão de cuidados médicos ao longo da vida até a regulação do equilíbrio entre trabalho e lazer e medicação supervisionada, se não morte medicamente induzida, a vida de cada indivíduo hoje está permanentemente sujeita a controle e aperfeiçoamento artificial. E precisamente porque agora a vida não é mais percebida como um evento primevo e elementar do ser, como destino ou fortuna, como tempo que se desenrola por conta própria, mas é vista como tempo que pode ser produzido e formado artificialmente, a vida pode ser documentada e arquivada antes mesmo de acontecer. De fato, a documentação burocrática e tecnológica serve como o principal meio da biopolítica moderna. Os cronogramas, regulamentos, relatórios científicos, levantamentos estatísticos e esboços de projetos que compõem esse tipo de documentação estão constantemente gerando nova vida. Mesmo o arquivo genético contido em cada ser vivo pode, em última análise, ser entendido como um componente dessa documentação – que documenta a estrutura genética de organismos anteriores, obsoletos, mas também permite que a mesma estrutura genética seja interpretada como um modelo para a criação de futuros organismos vivos. Isso significa que, dado o estado atual da biopolítica, o arquivo já não nos permite diferenciar entre memória e projeto, entre passado e futuro. Isto, aliás, também oferece a base racional para o que, na tradição cristã, é chamado de Ressurreição – e para o que nos domínios político e cultural é conhecido como um renascimento. Pois o arquivo de formas de vida passadas pode, a qualquer momento, tornar-se um roteiro para o futuro. Ao ser armazenada no arquivo como documentação, a vida pode ser repetidamente revivida e constantemente reproduzida no tempo histórico – caso alguém se decida a realizar tal reprodução. O arquivo é o local onde passado e futuro se tornam reversíveis.

 

Traduzido por Fórum Permanente

Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

Número 0

Número 1

Número 2

Número 3

Número 4

Número 5

Número 6

Número 7

Número 8

Número 9

PP 09 00CAPA3

Número 10


Edição Especial