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Resenha: Andrea Giunta, “América Latina em disputa. Apontamentos para uma historiografia de arte latino-americana”.

por Luiza Mader Paladino

Andrea Giunta é uma das mais importantes historiadoras da arte da Argentina. É docente na Universidade de Buenos Aires e em Austin, no Texas. Pesquisadora de arte latino-americana, tem diversos livros publicados, como: Vanguardia, internacionalismo y política, trabalho de fôlego no qual se debruçou sobre as estratégias para internacionalizar as vanguardas argentinas, por meio da renovação das instituições culturais do país, como o Instituto Di Tella, na década de 1960. Organizou diversas exposições de Léon Ferrari na Argentina e no estrangeiro, como na Pinacoteca de São Paulo, em 2006, bem como publicações sobre o artista. Em 2017, fará a curadoria da mostra Radical Women: Latin American Art - 1960-1985, no Hammer Museum, em Los Angeles, junto à Cecília Fajardo-Hill.

Neste artigo, Giunta se propõe revisar o modo como a história da arte latino-americana fora escrita e narrada nas décadas de 1960 e 1990, buscando discutir a possibilidade de encarar uma outra perspectiva historiográfica sobre a arte produzida na região. O primeiro momento foi assinalado pela presença constante dos Estados Unidos na região para tratar de assuntos estratégicos que incluía, também, a criação de projetos de modernização cultural, por meio de investimentos estrangeiros estimulados pela Aliança para o Progresso, no princípio da década de 1960. O interesse político no continente, sob o temor do avanço comunista que ameaçava a liberdade na região, promoveu a liberação de verbas pelo Congresso americano para o apoio econômico, que visava alterar a relação de artistas e intelectuais com o pensamento de esquerda. No segundo momento, por sua vez, há uma convocação para revisar e celebrar os 500 anos da “Conquista da América”, sendo válido mencionar os ecos de um crescente mercado de arte latino-americana e o esgotamento das tensões causadas pela Guerra Fria.

No final da década de 1950, surgem diversas exposições e publicações sobre a arte produzida no continente. São citadas duas referências: o dossiê de arte latino-americana, Art in America, e os Boletins de Artes Visuais, do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, dirigido pelo cubano José Gómez Sicre[i]. Ambos constituíram-se como dispositivos fundamentais para demarcar a nova guinada ou o “renascimento” das artes americanas. Tal diagnóstico foi definido a partir de uma situação inédita na qual América Latina e EUA surgiam unidas no “Hemisfério Ocidental” por uma arte sem regionalismos ou cores locais. Essa estabilidade alcançada só podia se dar por meio de uma linguagem de valor universalizante.

Nos boletins de Gómez Sicre, a nova agenda da arte latino-americana deveria se basear na linguagem internacional utilizada por artistas norte-americanos. Nesse sentido, os EUA, “como o país mais rico e desenvolvido, deveria ser a maior fonte de condução [...] de cultura que beneficiará a todas as nações do continente”. A cruzada cultural, conduzida pelo cubano, afirmava os valores continentais de essência universal, num momento em que a arte deveria se afastar de valores ultrapassados como os “indigenismos, campesinismos, obrerismos” demagógicos, lembrando que esses valores estavam diretamente ligados ao realismo socialista da pintura muralista, sobretudo, a mexicana. Sem dúvida, o programa de Gómez Sicre foi decisivo para a formação de uma visibilidade da arte latino-americana, ao longo da década de 1960, bem como na concepção de um colecionismo latino-americano em museus dos EUA.

Giunta cita outros intelectuais que contribuíram para essa discussão. Entre eles, o crítico Lawrence Alloway, que esteve na Argentina, em 1964, como jurado na II Bienal Americana de Arte. Alloway trazia uma outra perspectiva, apontando para a polaridade entre “modernidade” e “raízes”, em que elementos nativos eram “sabiamente” preservados em paralelo ao estímulo internacional. Além disso, o crítico problematizava a arte latino-americana dentro de um valor unificado, e suas implicações essencialistas, demarcando a importância das diferenças regionais. Desse modo, os artistas poderiam se ver livres de uma fidelidade continental que até esse momento os limitava.

Toda a construção dessa narrativa foi levada adiante e reiterada por múltiplas exposições e publicações sobre arte latino-americana por todo o continente. Os argumentos se concretizaram em redes eficientes que circularam pelo mundo a ideia de como deveria ser a arte latino-americana nessa “década emergente”. As estruturas selecionadas para essa narrativa seguiam uma linha cronológica e evolutiva: começava pela academia à independência, passando pelo impressionismo até a modernidade. E a etapa final e de consagração era marcada pelo triunfo do internacionalismo como caminho aberto “para o desenvolvimento de muitos estilos que têm capturado a atenção dos principais centros estrangeiros”.

De acordo com a autora, a reposta latino-americana veio por meio do Simpósio de Austin, organizado por Damián Bayon, em 1975. Estiveram presentes nomes como Marta Traba, Juan Acha, Aracy Amaral, Frederico Morais, Rita Eder, Rufino Tamayo, Octavio Paz, entre outros. A reunião foi marcada pela necessidade de assumir uma posição frente à hegemonia cultural norte-americana, além da discussão sobre até que ponto os artistas e críticos deveriam se afastar da influência imperialista ao se vincularem ao contexto latino-americano. Algumas perguntas serviram de fio condutor para o simpósio:

Existe uma arte latino-americana contemporânea como expressão distinta? O artista latino-americano pode produzir independentemente dos modelos estrangeiros? Ou ainda, é correta a queixa de que a falta de crítica artística na América Latina obriga o artista a buscar respostas em outros meios?

Marta Traba participou e, sem dúvida, apontou as críticas mais radicais. Conduzida pela a sua tese de resistência, manifestou o “mais enérgico repúdio” e “rechaço absoluto” ao projeto internacionalista destinado a desclassificar as províncias culturais em um conjunto “enganosamente” homogêneo. E completou: qual a relação de nossas culturas pré-tecnológicas com o projeto de arte global que trinfou na Europa e EUA “essas repugnantes aberrações” como a body-art, por exemplo? Giunta nos recorda das debilidades do projeto estético de Traba. As respostas vieram da mexicana Rita Eder e do crítico Frederico Morais. O crítico brasileiro discorreu sobre a importância do sentido de resistência, embora tenha se mostrado reticente quando este conceito era aplicado para análise de certos movimentos de arte que já estavam superados, evidenciando o caráter reacionário de Traba, tanto nos planos artísticos quanto políticos.

Outras pautas fizeram parte do Seminário, como o crescimento do mecenato de arte latino-americana por empresários norte-americanos à denúncia da relação das atividades de companhias multinacionais e instituições como a CIA com os regimes ditatoriais no cone sul.

Entre os dois períodos considerados, os anos 60 e 90, a autora aponta um hiato de circulação editorial sobre arte latino-americana, salvo os esforços do argentino Damián Bayon, que organizou os livros mais sólidos, proporcionando análises comparativas entre distintos países da região. Ela recorda que essa lacuna se deu, também, pelo rastro de violência que as ditaduras militares deixaram, distinto daquele espírito de intercâmbio e união pan-americana de outrora. No final da década de oitenta, em grande parte pelos ecos dos preparativos para a comemoração do quinto centenário da era das “descobertas”, foi inaugurada uma série de mostras e publicações, predominando as leituras relacionadas a um panorama continental de caráter temático. Nesse contexto, foram publicados dois compêndios sobre arte latino-americana – Historia del arte Iberoamericano(1989), de Leopoldo Castedo, um recorrido sobre arte pré-colombiana até os anos sessenta; e Arte en Iberoamerica – 1820-1980 (1989), da inglesa Dawn Ades. Embora os dois exemplares abordassem problemáticas específicas levantadas pelos artistas, ainda pecavam pela mirada generalista e superficial.

Andrea Giunta parte de alguns questionamentos: até que ponto estas histórias dão conta das distintas agendas artísticas? Ou, a partir de quais perspectivas podemos discuti-las? Como vimos, um dos critérios mais corriqueiros para narrar essa história foi se apoiar em leituras temáticas ou cronológicas para delimitar zonas comuns entre, por exemplo, o muralismo mexicano e o indigenismo peruano; sem levar em consideração as diferenças entre as obras e os contextos nas quais foram produzidas. Outro ponto de destaque é a prioridade que essas narrativas deram para a articulação ou dependência entre os grandes centros metropolitanos e latino-americanos, descartando estudos mais aprofundados entre as redes de intercâmbio entre países ou artistas latino-americanos.

E para finalizar, destaca que só haverá sentido em uma história da arte latino-americana se esta contribuir para uma análise que problematize as leituras reducionistas e descontextualizadas que guiaram boa parte das exposições, catálogos e publicações sobre o tema. O estudo de casos específicos em contextos históricos e a reconsideração das redes de influências latino-americanas podem servir como um ponto de partida.

 

 

 

 



[i] Gómez Sicre foi uma figura importante dentro dessa trama política marcada pela Guerra Fria. Atuou como conselheiro de Alfred H. Barr, Jr., no MoMA, em Nova York, organizando exposições de pintures cubanos que circularam pelos Estados Unidos. E dirigiu a sesão de Artes Visuais da União Pan-Americana e, posteriormente Organização dos Estados Americanos, OAS.