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Resenha: Angel Rama "A Cidade Ordenada" In: A Cidade Letrada. Arca, Montevidéu, 1998

por Marco Fabio Cunha Grimaldi

 

Resenha por: Marco Fabio Cunha Grimaldi

Palavras-chave: ordem, razão, lógica, plano, signo, urbanização

No primeiro capítulo de A Cidade Letrada, intitulado A Cidade Ordenada, Angel Rama analisa o processo de formação das cidades nas américas, em particular na América Latina, lançando seu olhar para o período que vai de 1521, ano da destruição promovida por Hernán Cortês de Tenochtitlán, antiga capital do império Azteca e sua subsequente reconstrução, tornando-se o que atualmente é a cidade do México, até 1960, ano de inauguração de Brasília.

Primeiramente, o autor descreve este longo processo de surgimento das cidades latino-americanas como um “parto da inteligência” ou um “sonho de ordem”, marcado por uma organização voltada para um futuro sonhado de maneira planificada que encontrou no novo mundo terreno propício para sua execução. Para tanto, os conquistadores do século XVI, imersos em um capitalismo expansivo e ecumênico, ainda que carregado do missionarismo medieval, distanciaram-se da cidade orgânica daquele período e promoveram uma nova distribuição do espaço que continha um novo modo de vida.

As monarquias absolutistas dos estados nacionais europeus, apoiadas em instituições como a Igreja e em uma sociedade hierarquicamente disciplinada promoveriam o aperfeiçoamento deste modelo surgido no XVI, fazendo com que a cidade se tornasse o principal ponto de inserção desta configuração cultural na realidade, legando-nos um novo modelo urbano de duração secular, a cidade barroca.

Um importante ponto ressaltado por Angel Rama é a constatação de que o impulso latente para transformação das urbes europeias não teria como florescer no velho continente, ao contrário  da América Latina, se considerarmos que a) as terras virgens do novo mundo se apresentavam como terreno ideal para aplicação do princípio de tábula rasa, b) era possível uma negação das culturas locais, mesmo que estas viessem a se infiltrar na cultura imposta ao longo do tempo, c) tratou-se de um processo de construção ex-nihilo, exatamente por causa desta negação e do abandono da “carga” histórica das nações europeias e seu modelo de cidades e d) como consequência de toda esta mobilização a América assumiria uma posição central na edificação da era capitalista. Ao citar George M. Foster, o autor descreve esta urbanização latino-americana como um Stripping Down Process, mediante o qual ocorreu uma filtragem de antigas experiências, em um processo de clarificação, racionalização e sistematização.

Em seguida, Angel Rama aborda questões de cunho mais filosófico, preparando terreno para a análise da importância do signo e as mudanças pelas quais este passou ao longo destes séculos e como elas impactaram o processo, dialogando com outros autores para ilustrar seu raciocínio. Identificando o neoplatonismo como o canal cultural para a expansão do capitalismo ibérico, ele recorre a Hippodamos e sua “confiança de que os processos da razão poderiam impor medida e ordem sobre toda atividade humana” para reforçar o papel preponderante da razão em todo o processo e vai mais além ao retomar a leitura de Lewis Mumford sobre a obra do padre grego, quando afirmou que “sua verdadeira inovação consistiu em perceber que a forma da cidade era a forma de sua ordem social”, uma descrição apropriada para o modo como se deu a construção das cidades latino-americanas a partir do século XVI.

Avançando em sua análise, Angel Rama faz uso das propostas de Michel Foucault e a ideia de que, no período barroco (clássico para os franceses), “as palavras começaram a se separar das coisas e a conjunção triádica de umas e outras através da conjuntura cedeu ao binarismo da Logique de Port Royal que teorizaria a independência da ordem dos signos”. As cidades e as culturas que surgiam se desenvolveram ao mesmo tempo em que o signo “deixa de ser uma figura do mundo, deixa de estar ligado pelos laços sólidos e secretos da semelhança ou da afinidade àquilo que marca”. Em outras palavras, começa a “significar dentro do interior do conhecimento” e “dele tomará sua certeza ou probabilidade”. Desse modo, tem-se que a forma da sociedade equivale à forma da cidade, ler o plano da cidade é ler a sociedade, sendo o projeto o ponto máximo de concentração de poder e a ideologia seu instrumento de legitimação.

A palavra-chave que irá perpassar todo o processo será “ordem”, palavra ambígua como o deus Janus e que se aplica a vários elementos fundamentais de sua implementação: a igreja, o exército e a administração; a história natural, a arquitetura e a geometria; a colonização como portadora dos interesses da metrópole. Segundo Angel Rama, instruções reais expedidas em Pedrarias Dávila em 1513 já enfatizavam a palavra “ordem” e suas derivadas, que aparecem seis vezes em um parágrafo de apenas oito linhas.

O autor avança no conceito de que a realidade física deveria, dentro do processo de urbanização latino-americana, espelhar a ordem social, sendo que esta operação de transferência (da ordem social para a realidade física) demandava um “prévio desenho urbanístico mediante as linguagens simbólicas da cultura sujeitos à concepção racional”, o qual respeitava o conceito de tabuleiro. Este conceito de Razão Ordenadora é reforçado pelas palavras de Michel Foucault ao afirmar que “o que torna possível o conjunto da episteme clássica é, desde cedo, a relação com um conhecimento da ordem”, donde surgiria o princípio do planejamento (planning), reforçado pelo iluminismo e desembocando em uma rígida institucionalização nos tempos contemporâneos.

Este longo processo de transição, conduzido como um top-down approach, implicava que a ordem deveria preexistir de modo a se evitar a desordem, ou seja, fazia-se necessária uma representação simbólica prévia. Neste contexto, os signos deveriam permanecer inalteráveis e havia um script ou um escritor que daria fé de todo o planejamento (aqui parece ser possível uma aproximação com o D. Quixote, quando este conhece seu falso duplo e lança mão de um escrivão para dar fé de si mesmo). Assim sendo, em uma chave oposta à percepção saussuriana, temos que a fala surge da escrita, levando a uma supremacia do desenho gráfico. O desenho gráfico, eludindo o plurisemantismo da palavra, proporcionava simultaneamente a coisa que representava (a cidade) e a coisa representada (o desenho), ambos independentes da realidade. O plano é, portanto, um marco ideológico e a ideologia como sistema cultural aparece de modo claro já na Logique de Port Royal (1662), a qual procurou estabelecer a diferença entre “as ideias das coisas e as ideias dos signos” e aponta para a absorção da realidade pelos signos nos mapas, quadros e planos:

 

“Quando consideramos um objeto em si mesmo e em seu próprio ser, sem levarmos o olhar do espírito àquilo que ele possa representar, a ideia que temos é uma ideia de coisa, como uma ideia da terra, do sol. Mas quando observamos um certo objeto que representa um outro, a ideia que temos é uma ideia de signo, e este primeiro objeto se chama signo. É desse modo que olhamos ordinariamente para os mapas e os quadros. Assim, o signo contém duas ideias. Uma da coisa que representa, outra da coisa representada; e sua natureza consiste em excitar a segunda pela primeira. ”

 

Angel Rama prossegue em sua análise dialogando com Arnauld-Nicole, os quais propõem uma primeira opção, a de olhar para o objeto enquanto signo, operação intelectiva apoiada sobretudo nos diagramas e afirmam que o signo “ostenta uma perenidade que é alheia à duração da coisa”. Posto de outra maneira, os signos só são submetidos à hermenêutica.

 

“Podemos concluir que a natureza do signo consiste em excitar nos sentidos pela ideia da coisa que figura aquela da coisa figurada, enquanto este efeito subsista, ou seja, enquanto esta ideia dupla seja excitada, o signo subsiste, mesmo que esta coisa seja destruída em sua própria natureza”.

 

Angel Rama propõe desse modo que tais condições nos permitem promover uma inversão do processo: “em vez de representar a coisa existente mediante signos, estes se encarregam de representar o sonho da coisa”.  Este sonho de ordem permitiria perpetuar o poder e preservar a estrutura socioeconômica e cultural, ao mesmo tempo em que implicaria oposição a qualquer discurso opositor. Estes procedimentos fizeram com que as cidades americanas já nascessem submetidas a uma vida dupla, a da ordem física e a dos signos (nível simbólico). Conforme Thomas More em sua Utopia (1516), citado pelo autor, “Aquele que conhece uma das cidades, conhecerá todas, dada sua enorme semelhança, exceto lá onde a natureza do terreno o impeça”. Imersos neste contexto, os séculos XV e XVI promoveriam uma evaporação do passado e, sem promover um renascimento do classicismo, o transportariam para o universo das formas, como prenúncio do historicismo dos séculos XVIII e XIX. Em citação a Peter Gay, o autor aponta que ocorreu um esforço sistemático geral “para garantir o controle racional do mundo, conhecimento confiável do passado e libertação da ampla dominação do mito”.

Temos então que o continente americano funcionou como terreno de experimentação cultural para a Europa barroca, onde abstração, racionalização e sistematização contrapunham-se a imaginação, invenção local e particularidade. Especificamente na América Latina ocorreria uma intensificação da “função prioritária dos signos, associados e encobertos sob o absoluto chamado Espírito”, de modo que a realidade deveria sempre submeter-se a um projeto pensado. Avançando nesta questão, Angel Rama estabelece uma comparação entre os processos de colonização dos Estados Unidos, do Brasil e da América Espanhola, a qual teria, diferentemente das “outras” duas, seguido uma mecânica militar. De qualquer modo, seria possível traçar, como de fato o faz o autor, um paralelo com o modelo grego em que a polis civilizada se opunha à barbárie dos não urbanizados.

Percebemos então que houve uma inversão em relação ao processo fundacional das cidades europeias. Enquanto na Europa o desenvolvimento agrícola levou ao surgimento da urbe, na América Espanhola sobretudo, o surgimento da urbe pensada e planificada levou ao desenvolvimento agrícola, que se fez em seu orbe e em sua função. Esta urbanização invertida levou diretamente à dominação e exploração dos povos locais e dos escravos e ao fenômeno do novo-riquismo. Segundo Fernand Braudel, citado por Angel Rama, “o capitalismo e a economia de mercado coexistem, se interpenetram, sem jamais se confundirem”. Nesta mesma chave, Domingos Faustino Sarmiento, em Facundo (1845), ainda opunha, em pleno século XIX, a cidade (civilização) ao campo (barbárie). Entretanto, vozes dissidentes não tardariam a surgir, como a de Euclides da Cunha, que incialmente pensava como Sarmiento, mas cerca de meio século mais tarde, em seu Os Sertões (1902), obra em que se debruça sobre os episódios ocorridos em Canudos, começaria a rever seus conceitos em face da carnificina lá produzida. No entanto, este processo ocorrido na América Latina aconteceu de modo tão intenso que não seriam infrequentes tentativas de divinização das cidades, principalmente em textos literários, como podemos perceber em Fernán Gonzalez de Eslava, padre e dramaturgo espanhol radicado no México que, em sua obra Colóquios Espirituais e Sacramentais (1610) escreveu que “os sete fortes que religavam a Cidade do México com as minas de prata de Zacatecas e permitiam o transporte seguro até a capital do vice-reino das riquezas, se transformaram em nada menos que os sete sacramentos da religião católica”. O que ocorreria com o passar do tempo seria apenas um processo de transculturação por meio do qual o ímpeto original de evangelizar se transmutaria naquele de educar.

Para finalizar, o autor esclarece que o termo “ordem” daria origem no século XIX a duas palavras, “subordinar” e “insubordinar”, aplicáveis a um cenário em que as cidades latino-americanas apresentavam uma hierarquia piramidal, sendo elas mesmas a periferia da periferia, posto que suas metrópoles eram então elas mesmas a periferia da Europa. Falando de coisas tão concretas como a servidão e a escravidão, Fernand Braudel aponta que “ela é inerente ao fenômeno de redução de um continente à condição de periferia, imposta por uma força distante, indiferente aos sacrifícios dos homens, a qual age segundo a lógica quase mecânica de uma economia-mundo”.

O texto de Angel Rama nos permite inferir algumas questões importantes para o entendimento do modo com o surgiram as cidades na América Latina. Primeiramente, observamos que o autor, a despeito de todas as diferenças que caracterizam as “três” Américas, buscou identificar aqueles pontos em comum que as unem, sobretudo em relação à América Espanhola e a Portuguesa e seus processos de dominação. Para tanto, ele não se furtou a fazer generalizações, meio possível de se fazer história para um território e um período tão extensos como aqueles que se tronaram objeto de sua investigação. Posto de outra forma, ele nos mostra que existiram vários projetos similares implantados de maneira diversa, respeitando-se suas especificidades.

Temos também que, ao contrário do que normalmente se associa ao período barroco, com a volúpia e os excessos de sua arte e arquitetura, o que efetivamente ocorreu foi um processo pautado pela razão, a lógica e a ordem, em que se procurou adequar as novas cidades que surgiam a um planejamento pré-estabelecido a ser imposto.

Finalmente, percebemos que por se tratar de uma construção ex-nihilo, sem o peso das estruturas feudais por detrás de seu surgimento, as colônias latino-americanas, especialmente as de matriz ibérico-católicas, já nasceram modernas, com tudo o que isso possa implicar de favorável ou não, como por exemplo sua burocracia intrínseca e o autoritarismo.