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Os museus são templos do tempo?

relato crítico por Mariana Pimentel

Relato Crítico da Plenária de encerramento da 23ª Conferência Geral do ICOM 2013

Palestrante: Mia Couto

O escritor moçambicano Mia Couto encerrou essa 23ª Conferência nos propondo uma reflexão sobre o tempo, para ele a verdadeira matéria do museu. No entanto, nos alerta o escritor, é preciso que não deixemos que o museu se torne um templo do tempo, isto é, um lugar de adoração, veneração e culto do passado. Pois, se o passado nos é fundamental, isto se deve à sua capacidade de nos lançar em direção ao futuro, daí afirmar que “o passado e o futuro são duas margens de uma mesma miragem”. Todo o exercício de recordação deve ser também um ato de invenção. Portanto, memória e criatividade não são uma dualidade conflituosa, mas ao contrário, constituem um mesmo processo por meio do qual damos vida ao hoje.

Ao longo de sua fala, Mia Couto nos conduz, por meio de uma série de narrativas de cunho subjetivo e pessoal, a uma reflexão sobre a relação entre o museu e o tempo. Para começar, nos relata sobre o modo como gosta de desfrutar de uma visita ao museu. Dispensando qualquer guia ou cicerone, passeia sozinho pelas salas dos museus a fim de experimentar um olhar ingênuo para as coisas, sem a mediação do conhecimento, para assim de visitante tornar-se um viajante. Isto é, para escapar a uma relação ordenada com o tempo em favor de uma liberdade temporal, desfrutada apenas por aqueles que sabem errar ao sabor do tempo.

Conta-nos, então, a história da descoberta, durante as escavações na antiga cidade de Babilônia, de um museu, que só foi assim considerado visto os objetos estarem ordenados segundo uma escala temporal. E, acrescenta, a curadora deste primeiro museu era também sacerdotisa do deus Nana, divindade da lua, que se ocupava dos ciclos do tempo. Portanto, o primeiro museu nasce como um Templo do tempo.

Ora, mas não é exatamente essa imagem de Templo do tempo que o escritor moçambicano procura combater? Convocando então sua condição moçambicana, “nasci num tempo de charneira, entre uma pátria que nunca houve e uma nação que ainda está nascendo”, Mia Couto nos fala das duas concepções do tempo que vigoram nessa Moçambique múltipla, plural e heterogênea e ainda por se inventar. Um tempo concebido como chuva, que não nasce não morre, nem tem princípio nem fim, apenas um modo de a água acontecer. Aqui, a construção da memória é considerada uma viagem errática propiciada pelos deuses. Já para aqueles cujo rio funciona como a metáfora do tempo, caminho entre a nascente e a foz, a viagem pelas águas da memória exige um veículo que direcione a viagem.

Esta segunda concepção do tempo e, por conseguinte, da memória, pretende nos proteger do caos, impondo uma regra e uma ordem ao mundo. Ora, mas é a esta idéia de tempo, “penteado e engomado”, que Mia Couto vai relacionar o museu. Idéia esta que nos torna herdeiros do ontem e donos do sempre. Se o caminho a ser percorrido já está traçado da nascente à foz, não há o que criar, e a viagem pelas malhas da memória é sempre a repetição incansável deste já traçado roteiro de viagem.

Passemos agora à outra narrativa. Aqui, Mia Couto nos faz voltar à sua infância e a um acontecimento que o fez compreender o que era de fato um museu. À força de acompanhar sua mãe, teve que freqüentar a casa de uma vizinha, viúva portuguesa, que ali estava para acompanhar seu filho que cumpria o serviço militar no exército colonial. Nesta casa havia um armário que o intrigava, visto a pobre mulher durante suas andanças por sobre os velhos tacos do chão abrir e fechar suas gavetas insistentemente. Até que um dia, a viúva desesperada diante da possibilidade da morte do filho revela o que ali havia de tão importante para si, distribuindo o conteúdo por sobre a mesa: uma centena de objetos, órfãos, díspares, inúteis. Objetos que diante dos olhos estupefatos do garoto pareciam sem qualquer serventia. Só mais tarde iria entender que ali, pela primeira vez, estava a visitar um museu: pois não era a viúva que guardava aqueles objetos, mas os objetos que guardavam a viúva. Aquela casa e seus objetos era um Templo de um tempo viúvo.

Desta forma, nos ensina Mia Couto, não é o museu que guarda os objetos, mas antes fabrica por meio da acumulação e da ordenação destes objetos um tempo individual e coletivo, escava uma interioridade em nós. Por isso, ao irmos a um museu o que vemos não são objetos, mas a nós próprios.

No entanto, acrescenta, o museu não se reduz a um prédio, a uma estrutura física. Indo ao encontro da poeta portuguesa Sofia de Mello, nos faz entender que o museu é um lugar, lugar qualquer onde se cruzam e se tecem memórias e invenção: seja o entorno de uma mesa onde a família se reúne para uma refeição, seja o cemitério de uma cidade ou ainda a cultura oral de um povo.

E aqui ele chega a um ponto crucial de sua reflexão: a relação entre memória e invenção proporcionada pela experiência museu parece ter se perdido nos tempos atuais. Neste tempo de globalização, onde tudo é imediato e simultâneo, veloz e voraz. O Império do instantâneo, nos diz ele, destronou o ontem. Vivemos no tempo do consumo imediato e, mais, num tempo onde o que importa não é viver, experimentar, mas registrar, fazer do acontecimento uma imagem a ser circulada e não história a ser narrada.

Com isso perdemos a soberania sobre nós mesmos, isto é, a capacidade que temos de por meio dos objetos e das histórias que narramos de nos inventarmos, de criarmos esta interioridade que nos constitui. Deixamos, assim, de sermos senhores do tempo, senhores de nós mesmos.

E por isso que, nos alerta Mia Couto, ao invés de nos lamuriarmos por não termos mais tempo, de ir ao museu, de encontrar os amigos etc., deveríamos, sim, querer e viver um tempo que seja nosso.

Conta-nos, então, a história da criação do Museu da Revolução em Moçambique, a qual foi encomendada a museólogos coreanos. Museu que nasceu morto, pois a sua história não foi contada por aqueles que a viveram, era apenas um transplante mal feito de identidades. Esta narrativa vem a ilustrar o que o escritor já vinha tentando nos dizer: o museu não é apenas um lugar de depósito do passado, mas antes de tudo de criação do futuro. Mas esse futuro não é senão criado pela nossa capacidade de ao narramos o nosso passado inventarmos a nós mesmos.

Por isso, e aqui chegamos ao ponto nodal de sua reflexão, a criação de um museu não pode seguir um modelo único, pois o tempo de cada cultura, de cada tradição é que deve ser a sua força motriz. E a diferença entre estas narrativas, que constituem o que há de singular em cada povo, é uma diferença de tempo, pois narrar é, antes de tudo, um modo de habitar o tempo.

Mia Couto retoma, então, a questão inicial: os museus são templos do tempo? Não deveriam. E isso porque, primeiramente, teríamos que acreditar num tempo único, isto é, num modo único de habitá-lo. Assim, a diversidade cultural só pode ser garantida pela diversidade temporal. Depois, os museus não podem ser templos, pois não devem ser lugar de culto, mas de cultura, isto é, de invenção. E isso porque, o museu, ele também, é uma entidade viva, a ser reinventar constantemente.

Por isso, nos alerta Mia Couto, se queremos fazer com que os museus fiquem mais próximos das pessoas e participe da construção da cidadania, deveríamos estar menos preocupados com o uso da tecnologia, e mais com a afirmação do direito à diversidade dos tempos. O impasse não é de ordem técnica, mas ético cultural, isto é, de soberania sobre o nosso tempo. O museu deveria, portanto, afirmar o direito à diversidade dos tempos, a nossa capacidade de inventamos nosso próprio território subjetivo, individual e coletivo.

 

Mariana Pimentel