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Mesa 5 - Morte e superação do artista / Uma leitura crítica do formalismo de Wolfflin

Relato por Maria Antonia Couto da Silva

Morte e superação do artista

Luiz Marques é doutor em História da Arte pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, de Paris, onde defendeu a tese “Ligne et Volume dans la Peinture du Duecento en Italie Centrale et la Naissance d'un Idéal de Culture” [Linha e volume na pintura do Duecento na Itália Central e o nascimento de um ideal de cultura] e é professor de historia da arte na UNICAMP. Vem dedicando-se à pesquisa de arte antiga, medieval e do Renascimento. Foi curador chefe do Museu de Arte de São Paulo – MASP, entre 1995 e 1997. Foi curador de diversas exposições, entre elas “700 Anos de Arte Italiana: Obras-Primas da Calábria” em 2005, e “Arte Italiana em Coleções Brasileiras, 1250-1959”, ocorrida em 1997. Dentro do projeto temático “A Biblioteca Cicognara - A Constituição da Tradição Clássica”, (da Fapesp), organizou as publicações “A Constituição da Tradição Clássica” (Hedra, 2004) e “A Fábrica do Antigo” (Editora da Unicamp, 2008).

O pesquisador partiu da análise de uma obra do pintor francês Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830) para estabelecer uma reflexão sobre um tema freqüente na arte do século XIX: a superação e a morte do artista, sua morte física e artística[1].

Marques observa que o catálogo raisonné de Nicolas-Antoine Taunay, recentemente publicado, revela que artista pouco se ocupou deste tema, embora o tenha abordado de maneira muito particular[2]. Ele inicia a conferência com a análise de duas obras de Taunay de temática intimamente associada: “Cimabue e Giotto”[3] e “A Morte de Francesco Francia à vista de ‘Santa Cecília’ de Rafael[4] [Fig. 1], realizadas por volta de 1808. A segunda obra foi retomada pelo artista em 1824, em um momento diverso do contexto artístico parisiense.

A fonte comum empregada por Taunay é o texto de Giorgio Vasari.[5] No quadro “Cimabue e Giotto” o pintor evoca uma passagem inicial  da Vida de Giotto, na qual o autor, em uma das anedotas mais populares da história da arte, narra o encontro do velho mestre Cimabue com um pastorzinho de dez anos, que “desenhava com uma pedra pouco apontada uma ovelha, sem outro aprendizado que o da natureza; razão pela qual Cimabue, maravilhado, convidou-o a vir ter consigo”[6]. Como nota Marques “o encontro e o convite selariam o destino do velho mestre, superado por sua própria criatura”. Marques observa que Nicolas Taunay é um dos primeiros, senão talvez o primeiro, a tratar na pintura o tema que conhecerá uma bela fortuna na pintura da primeira metade do século XIX.

No segundo quadro, “A Morte de Francesco Francia à vista da ‘Santa Cecília’ de Rafael”, Taunay inspirou-se em outra passagem da obra de Vasari, que comenta que o pintor Francesco Raibolini, conhecido como Francesco Francia (ca1540-1517), teria morrido “de dor e melancolia, como alguns acreditam”, diante da visão do retábulo pintado por Rafael para a igreja bolonhesa de S. Giovanni in Monte. Como observa Marques, o jovem Rafael teria enviado de Roma a pintura a Francia, pintor local de uma poética considerada ultrapassada, para que o restaurasse de possíveis danos causados pela viagem, pedindo a ele que, como amigo também “corrigisse algum erro, caso o percebesse”. Francia “com grandíssima alegria, mandou abrir a caixa e colocar o quadro sob boa luz. Mas foi tal seu estupor e maravilhamento que, reconhecendo seu erro e a presunçosa estultice de sua louva ilusão, foi abatido pela dor e em brevíssimo tempo morreu”[7].

Como analisa Marques, no quadro de Taunay o ateliê de Francia apresenta-se dividido em dois ambientes, por meio de um pórtico de inspiração serliana. Através do arco o espectador pode observar três esculturas antigas e outras referências aos cânones arquitetônicos e esculturais da Antiguidade. Na parede à direita estão colocados três quadros de inspirados na poética de Rubens. O contraste entre as referências à arquitetura e escultura clássicas e as pinturas de Rubens remete à querelle du coloris, debate entre ocorrido na Academia Francesa entre os partidários de da linha e do colorido, que se posicionavam a favor de Poussin ou de Rubens[8]. Taunay revela seu posionamento a favor do ideal neoclássico, ao colocar no centro do quadro a pintura de Rafael e, atrás desta a estátua antiga, simbolizando o classicismo “programático” de Rafael.

O autor lembra que além do círculo de colecionadores e estudiosos do século XVIII, o texto de Vasari permaneceu desconhecido em língua francesa até cerca de 1803-1806, quando Charles Claude Lebas de Curmont publica a tradução parcial das Vite, em três volumes.[9] 

Para Marques  “a superação de Cimabue por Giotto tornava-se emblemática do processo de superação artística e continha in nuce a dinâmica histórica que acabara de alçar a arte francesa à condição de herdeira e renovadora do gênio italiano”. Partindo do tema vasariano da superação do artista, Marques reúne e analisa uma série de obras do século XIX nas quais são abordadas estas questões e as analisa em seus aspectos formais e iconográficos, comentando também possíveis fontes literárias.

Em relação ao quadro “Morte de Francesco Francia”, Lebrun Jouve, autora do mencionado catálogo sobre Taunay nota que os quadros “Deposição da cruz” de Francia e “Santa Cecília” de Rafael, considerados obras-primas destes artistas, estavam expostos lado a lado na Grande Galerie do Louvre, devido às pilhagens napoleônicas. O confronto entre as duas obras poderia ter motivado Taunay a evocar a anedota vasariana.

Para Marques, entretanto, na obra de Taunay não “há vestígio da ambigüidade tragicômica de Vasari”. Taunay teria organizado a narrativa a partir do estudo de  outra obra, também exposta na Grande Galerie, juntamente com as pinturas de Francia e Rafael: “A Comunhão de São Jerônimo”, de Domenichino, da igreja de S. Girolamo della Carità[10]. Como nota Marques “não apenas a composição, mas também a patética figura de S. Jerônimo, sustentado por seus seguidores e prestes a expirar, era certamente sugestiva para o tema da agonia e morte do artista”. O quadro “A morte de Germanicus”, de Poussin (1626) também foi evocado por vários pintores desde os anos 1778-1783, como modelo para a representação de cenas de artistas em seus leitos de morte.

Já no Salon de 1824 Taunay expõe uma outra versão da Morte de Francisco Francia, em um outro contexto artístico e também de sua trajetória pessoal, e “é tentador imaginar o retorno de Taunay aos dois temas vasarianos como alusões (por certo involuntárias) à própria superação de nosso artista no novo contexto artístico parisiense de 1824”. Como observa Marques, por sua poética e estilo, e por sua mentalidade também, fundamentalmente referida às encomendas de corte, Taunay tornara-se anacrônico em um modo em tudo comparável ao de Francia em 1517.

Nos anos 1820 e 1830 passam a ser realizadas várias pinturas que evocam passagens do texto vasariano referentes à vida dos artistas, e “no que se refere a esse aspecto da pintura troubadour – a fabulação dos mestres do Renascimento em pinturas de pequeno formato –, Taunay faz boa figura ao lado de Bonington, Ingres, Delacroix e Delaroche”. Marques enfatiza que, desde os anos 1820, Giorgio Vasari torna-se um interlocutor eleito em Paris e os artistas não deixam de perceber o relato da morte de Francia:

 

[Francia] de dor e melancolia, como alguns acreditam,

 deixou-se morrer, sendo-lhe

advindo, de tanto contemplar fixamente a

vivíssima pintura de Rafael, o que sobreveio

a Fivizano ao contemplar sua bela ‘Morte’,

a respeito da qual se escreveu este epigrama:

 

O pintor divino recebeu-me, verdadeira, na mente.

Em seguida, a mão perita dirigiu-se à obra.

E à medida em que nela fixava as cores

Por demais atento, empalideceu e morreu.

Pois sou a Morte viva, não a morta imagem da Morte,

Se cumpro o dever que a morte cumpre.”[11]

 

Esta imagem da “Morte”, mencionada no texto vasariano, que, de tão bem realizada pelo artista, ganha vida e “cumpre o dever que dela se espera”, seria uma fonte inspiradora para vários artistas ao longo do século XIX.  Partindo da reflexão sobre o quadro de Taunay e seus modelos formais, Luiz Marques analisa uma série de obras ligadas ao tema da morte do artista, estabelecendo um paralelo entre morte física e morte artística do artista, em obras dos séculos XVI ao final do século  XIX.  Este conjunto de obras, que não pode ser comentado neste breve relato, é compreendido também à luz de textos filosóficos e literários e, como nota Marques, nestas obras do século XIX que têm como tema a morte do artista estes passam a revelar também um questionamento sobre sua própria identidade – “as mais fiéis imagens de sua própria identidade”.   

  

Uma leitura crítica do formalismo de Wolfflin

Em seguida ocorreu a palestra de Evonne Levy, professora Universidade de Toronto, no Canadá. Ela é especialista em estudos da arte e arquitetura do Renascimento e do Barroco e da história dos museus e vem dedicando-se ao um projeto cujo tema é “O Barroco, a História da Arte e a Política”. Nesta palestra ela analisou aspectos políticos na obra do historiador da arte e da arquitetura Heinrich Wölfflin (1864 - 1945)[12], analisando o livro “Renascença e Barroco”, publicado em 1888[13].

Levy inicia sua fala com uma indagação: “O que significaria para a História da da Arte se seu formalista fundador fosse um pensador político?” Propõe-se a realizar uma leitura crítica do formalismo de Wolfflin, considerado pela historiografia como um pensador apolítico. A autora enfatiza que as obras de Wolfflin foram utilizadas no contexto nacional-socialista, e que sua biografia não foi pesquisada nem suas obras analisadas em suas implicações políticas.

Sua abordagem em relação ao autor é inovadora, e a pesquisadora consultou textos e cadernos manuscritos preservados em arquivos na Basiléia, na Suíça, além de centenas de cartas de Wolfflin, de difícil leitura, publicadas em fragmentos e até então não estudadas.

A pesquisadora parte de outra indagação: haveria na obra de Wolfflin um formalismo político, ou existiria no texto uma abordagem política inconsciente do formalismo?

Levy analisou a linguagem do texto de Wolfflin e alguns aspectos de sua formação até então não considerados pelos historiadores, como a preocupação com a emergência do Estado alemão. O texto do livro de Wolfflin é comparado a obras de historiadores da arte e da arquitetura posteriores a ele. Em sua opinião os temas políticos emergem na análise do autor sobre a relação da parte com o todo e do indivíduo com a totalidade. Esse questionamento pode ser identificado com o da filosofia política, que procura entender a relação do indivíduo com a estrutura de poder.

Wolfflin analisa a forma individual tomada pela totalidade no Barroco, em oposição ao Renascimento, que enfatiza a forma individual. Levy observa que, para o autor, no Barroco não há mais uma resposta individual, o único objetivo é impressionar e arrebatar o espectador. Na arquitetura barroca não existiriam mais “formas individuais, figuras individuais e motivos individuais, mas o efeito da massa”.

Levy selecionou a alguns trechos do livro para analisar a linguagem empregada por Wolfflin, como aqueles em que o autor estuda os projetos para a cúpula de São Pedro, em Roma, no período do Renascimento e do Barroco. Wolfflin usa a palavra subordinação para descrever a relação barroca das partes com o todo.

Para o autor, no projeto de Bramante as quatro cúpulas vizinhas produziriam um contra-equilíbrio, diminuindo a sensação de arrebatamento. Já no projeto de Michelangelo, entendido como um artista barroco, foi criado um “centro dominante absoluto”, que fazia com que tudo em volta dele parecesse não livre. Levy destaca o caráter antropomórfico da análise de Wolfflin, em que as formas renascentistas são percebidas como independentes e não subordinadas ao todo. O historiador percebe também efeitos violentos nas obras barrocas, nas quais as formas individuais são oprimidas e perdem sua liberdade e autodeterminação. Um exemplo analisado é o Palazzo dei Conservatori [Palácio dos Conservadores] em Roma, também projeto de Michelangelo, no qual as o autor vê proporções desconfortáveis e irracionais dos intervalos entre as colunas, impedindo a ocorrência de formas determinantes e livres.

Para Levy, na análise de Wolfflin está implícita uma compreensão da forma barroca como arte dos jesuítas e da Contra-Reforma, e o drama do indivíduo do é expresso na arte e na arquitetuta, também por meio do jogo de luzes e sombras.

O livro de Wolfflin, publicado em fins do século XIX, é uma obra de grande relevância para os historiadores da arte e da arquitetura. Levy analisa em sua conferência a revisão da obra de Wolfflin feitas pelos historiadores Nikolaus Pevsner, James Ackerman e Jacob Burckhardt[14]. Lembra que estas leituras são também políticas e revelam a apreensão consciente ou não da natureza ideológica dos termos de Wolfflin.

Levy conclui indagando novamente se devemos pensar o trabalho de Wolfflin como formalismo político ou se o político é o inconsciente do formalismo. Para ela os cadernos de notas e os documentos consultados sugerem que a segunda proposição seria a mais acertada, e o formalismo revelou-se capaz de tratar do mundo político.


[1] Uma versão bastante ampliada do texto apresentado nesta conferência foi publicada em: MARQUES, Luiz. “Taunay, superação e morte do artista” IN SCHWARCZ, Lilia Moritz; DIAS, Elaine (org.). Nicolas-Antoine Taunay no Brasil: uma leitura dos trópicos, São Paulo :  Sextante, 2008.

[2] LEBRUN JOUVE, C., Nicolas Antoine Taunay, 1755-1830. Paris, Arthéna, 2003.

[3] Segundo Marques, o catálogo de Taunay, op. cit., p. 251-252, indica quatro versões dessa obra,  três das quais não-localizadas e duas sem indicações de suporte, técnica e medidas. A única informação disponível da versão é sua presença no Salon de 1808. A versão P. 542, um esboço, conserva-se no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro.

[4] Coleção particular em São Paulo, (32,4 x 40,2 cm.).

[5] A primeira edição do livro “Le Vite de' più eccellenti architetti, pittori, et scultori italiani, da Cimabue insino a' tempi nostri” foi publicada por Lorenzo Torrentino, em 1550. A segunda edição, bastante modificada e ampliada, intitulava-se “Le Vite de’ più eccelenti pittori, scultori et architettetori, scrite, et di nuovo ampliate da M. Giorgio Vasari, etc”, e foi publicada por i Giunti em 1568.

[6] Tradução de Luiz Marques.

[7] Tradução de Luiz Marques.

[8] Sobre o debate entre os partidários do desenho e da cor há uma vasta bibliografia, entre outros títulos: “Rubens contre Poussin: la querelle du coloris dans la peiture française à la fin du XVIIe siècle”, Musée des Beaux-Arts, d’Arras, 2004; ALPERS, Svetlana. “Making a taste for Rubens” In The making of Rubens. New Haven, Yale  University Press, 1995; e LICHTEINSTEIN, Jaqueline. A cor eloquënte. São Paulo, Siciliano, 1994.

[9] Giorgio Vasari, Vies des peintres, sculpteurs et architectes les plus célèbres, Paris, an XI, 3 vol., 1803-1806, tradução realizada a partir da edição de Giovanni Gaetano Bottari (1759).

[10] O quadro pertence atualmente à Pinacoteca Vaticana, óleo sobre tela, 419 x 256 cm.

[11] Vasari, Vita de Francesco Francia, tradução de Luiz Marques.

[12] Wolffflin é autor, entre outros, dos livros “Conceitos Fundamentais da História da Arte” (1915) e “ A Arte Clássica” (1898), várias edições.

[13]Renaissance und Barock”, Munique, 1888, várias edições.

[14] PEVSNER, Nikolaus, Perspectiva da arquitetura européia; ACKERMAN, James S. The Architecture of Michelangelo, e BURCKHARDT, Jacob Christoph, Architecture of Italian Renaissance, várias edições.