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Mesa 9 - Arte como linguagem e a justificativa da estética como abordagem hermenêutica da obra de arte / Proust, a imagem e a imaterialidade da arte

Relato por Fabio D'Almeida Lima Maciel

Arte como linguagem e a justificativa da estética como abordagem hermenêutica da obra de arte – Marie-Anne Lescourret -

Proust, a imagem e a imaterialidade da arte –  Jorge Coli

Quem compareceu às apresentações da mesa 9 do Simpósio Internacional Crise da Imagem ou Crise da Teoria pôde testemunhar as falas da professora da Univesidade Marc Bloch, Marie-Anne Lescourret, e do professor da Universidade de Campinas, Jorge Coli.

Embora divergentes no tipo de imagem estudada (Lescourret com a pintura e Coli com a fotografia), as palestras dos pesquisadores, por diversas vezes, seguiram um fio condutor que considerava a imagem ilusionista um objeto autônomo e dotado de um tipo indepente de linguagem.

A primeira apresentação, proposta por Lescourret, com o tema: Arte como linguagem e a justificativa da estética como abordagem hermenêutica da obra de arte, esteve inteiramente vinculada à proposição da imagem pictórica como um tipo de “mensagem sem código”. Em outras palavras, algo que é compartilhado universalmente sem que haja necessidade de uma aquisição sistemática de um conjunto de códigos que formem seu aparato semântico. No entanto Lescourret defenderia que mesmo na ausência de um sistema de signos a serem decorados, a arte visual tem significado, pois ao mesmo tempo ela é algo e mostra algo. Fazendo esta afirmação a pesquisadora já introduziria boa parte das questões relativas ao seu seminário: considerar a arte como  linguagem, formadora de um complexo sistema de significantes.

Mas como tentar elaborar e explicar as relações que fazem a arte visual ser uma “mensagem sem código” ao mesmo tempo em que é universalmente compreendida?  Um primeiro passo em direção à explicação de Lescourret pôde ser obtido na sua recusa em considerar a arte apenas como documento estético ou decorativo. A pesquisadora, ao contrário, declarou que pensaria a arte como documento antropológico, como um atestado de produção de objetos feitos pelo homem, e, sobretudo, como um meio que permitiria dividir experiências e significados.

Se a arte mostra algo e é entendida, então não há problema algum em considerá-la um tipo de linguagem. Ao trazer referências importantes como as do filósofo austríaco Ludwig J. J. Wittgenstein, Lescourret defenderia seu ponto de vista de que não é necessário haver um código para se constituir linguagem. A música, mesmo aquela composta apenas por sons, é uma linguagem e nos trás um tipo de mensagem. A pintura, com outra gama de significantes, faria o mesmo. Ambas falariam sem um código identificado, mas de significado reconhecível. A similaridade da pintura com a definição tradicional da linguagem, defendida pela semiologia, não se vinculava com o fato de ter alguma relação com a linguagem falada, mas por ter uma “voz” que podia ser ouvida.

A questão central para Lescourret estava em considerar toda a linguagem como uma troca. Diversos exemplos foram dados. Ela citaria o pintor Kandinski que definia a pintura como troca de alma para alma, uma necessidade interna de uma alma para outra alma. Para Merleau Ponty, afirmaria Lescourret, “a linguagem começa com o encontro do mundo, quando isso é mais forte que o sujeito...pois a essência da linguagem é o encontro do mundo.”      

Sendo a pintura um elemento presente fora do sujeito, mas produzido por uma alma humana, a recepção (ou troca) desta pintura por outra alma deveria ser, necessariamente, lingüística.

Atribuída, portanto, à pintura a noção de um sistema de linguagem, Lescourret se direcionaria àquela que poderia ser considerada a segunda parte de sua fala: a pintura, passível de significado,  “poderia ser avaliada sob as técnicas de compreensão e produção de significado.”

Evidentemente compreender e produzir são definições presentes, cada uma, em uma ponta da cadeia comunicativa. É necessário que alguém produza significado para outro alguém poder traduzir. Na pintura, da mesma forma, o processo de produção não é igual ao processo de recepção da mensagem. Lescourret, entendendo estas duas ações como diferentes, buscaria em dois ramos filosóficos as bases para a explicação do processo de construção de significado na ação  pictórica. É verdade que a pesquisadora não chegaria a explicar esse processo, mas como ela própria havia dito no início de sua fala, forneceria “apenas algumas dicas” sobre o desenvolvimento do tópico investigado. E estas dicas vieram acompanhadas da alusão à Hermenêutica e à Retórica.

Para Lescourret, a Hermenêutica, entendida como a técnica, ou a ciência da interpretação dos textos e símbolos, funcionaria como uma importante ferramenta na compreensão do significado da obra visual da arte. Esse ramo teria uma ligação muito prática com a interpretação da linguagem, e nos tempos modernos sempre esteve vinculada à noção de esclarecimento das escrituras sagradas da bíblia. Como a Hermenêutica não é regida por um conjunto inflexível de regras que definem ou atribuem um valor fixo a um significante, o potencial que ela poderia ter na tradução de elementos pictóricos seria enorme.

A Retórica, por sua vez, deveria se vincular à produção da obra de arte. O seu papel na pintura é evidente desde o renascimento, principalmente a partir do momento em que os seus teóricos iniciaram um processo de atribuição das preceptivas da poesia grega dentro do contexto da produção pictórica, também conhecida como a doutrina da Ut Pictura Poesis. Cada vez mais, termos como Inventio, Compositio, Elocutio, entre outros, muito presentes na retórica antiga, foram se tornando comuns como regras a serem seguidas na produção da obra visual de arte.

Para Lescourret, nós devemos pensar a retórica dentro da pintura como em seu início, com Aristóteles, isto é, como a arte da persuasão. Ela se ligava à paixão humana e o uso de suas regras, acreditava-se, era necessário para a exaltação, ou mesmo expurgação, das emoções no quadro. A Retórica na produção dos quadros, assim como na poesia, visava provocar uma reação mais contundente e apaixonada por parte daqueles que a viam, e, segundo Lescourret, “liberando as imagens da fala tentada.”

De fato, freqüentemente as obras emocionam e são entendidas por nós. Porém o mais misterioso para Lescourret é o fato de continuarmos a entender obras que foram produzidas por gerações muito anteriores à nossa, e de, ainda hoje, continuarmos a produzir incessantemente imagens. Um quadro renascentista pendurado no museu faz tanto sentido para nós quanto um quadro pintado no início do século XX. Entre a produção desta e daquela imagem existe uma grande extensão temporal que ainda assim não conseguiu eliminar a nossa capacidade em admirar e ser emocionado pela imagem renascentista. Por isso, defenderia Lescourret, a necessidade de se emprestar uma abordagem antropológica à pintura. Pois o que permanece verdadeiramente em comum entre as duas imagens é o fato de ambas terem sido produzidas por humanos, e de serem elas o resultado da liberação de paixões e sentimentos. Esta, para a pesquisadora, é a coincidência em todas as obras visuais de arte: elas são frutos de uma interação antropológica que gera emoções.

Sem uma real conclusão, Lescourret fecharia sua fala ressaltando a importância de se fazer algo em relação aos meios artísticos que geram os sentimentos quando vemos uma pintura. Novamente a pesquisadora consideraria a Hermenêutica e a Retórica como ferramentas importantes na identificação das paixões buscadas pela obra de arte. Talvez, com elas, seria possível explicar perguntas como “porque criamos imagens?”. Ou ainda “porque a linguagem artística opera como uma linguagem universal?”. Para a pesquisadora, a resposta, ainda que aberta, deveria ser encontrada não no processo comunicativo em si, mas na própria natureza humana.

Logo após o seminário de Marie-Anne Lescourret, o professor da Unicamp, Jorge Coli, veio à mesa apresentar o seu trabalho sobre Proust, a imagem e a imaterialidade da arte.

A fala de Coli foi concentrada sobre um argumento anti-romântico da imagem, muito contrário a diversos textos que seguiriam a mesma linha investigativa do célebre ensaio A obra de arte no período de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin. Como se sabe, o texto de Benjamin foi por muito tempo uma importante crítica a respeito do resultado da proliferação de imagens derivadas dos meios técnicos de reprodução no âmbito da arte. A fotografia, dizia ele, era um meio que certamente permitiu a difusão de uma grande quantidade de cópias retiradas a partir de uma única peça de arte. O problema era que, ao fazer isso, a reprodução de uma obra de arte minava aquilo que Benjamin acreditava ser a sua aura, o aspecto quase sagrado do original, sua unicidade. Reproduzir uma obra fotograficamente não seria apenas dizer que aquela cópia não era o original, mas também dizer que ela era a própria negação da obra, posto que todas as características únicas apreendidas uma vez frente à ela seriam perdidas em sua reprodução[1].

Foi com esta idéia inicial que também trabalhou Coli ao declarar que “a noção de obra de arte trás imediatamente a referência”, ainda hoje, “de alguma coisa concreta, um objeto paupável que os museus tem que cuidar”, lutando contra o tempo. Mas para o professor da Unicamp, esse não era o tópico que interessava desenvolver em seu trabalho. Ao contrário, interessava pensar o aspecto imaterial da obra de arte, adquirido mais contundentemente depois da difusão dos meios de reprodução.

A fotografia, em específico, ganharia importância central no pensamento de Coli e por um motivo muito simples: para ele, “a História da Arte Moderna se afirmou com a fotografia, o suporte que permite comparação e estudos”. Não fosse ela, os historiadores ainda estariam presos às interpretações visuais de terceiros ou, pior, à necessidade de desenvolver pesquisas apenas nos lugares e referências que podiam visitar.

Dentro do mercado de compra e venda de objetos artísticos, a lógica de aquisição, sem dúvida, leva em consideração a originalidade do exemplar. Para o historiador da arte, no entanto, uma fotografia também não é o original, mas freqüentemente é através dela que ele pode chegar mais perto de uma obra. Para ele, a cópia quase sempre toma o lugar do original em estudos, adquirindo, portanto, quase o status de original. Por isso, Coli defenderia que os historiadores devem saber a relevância que os meios de reprodução têm em seu trabalho, pois quando se fala em história da arte, nenhuma imagem é secundária. Ele afirmaria que uma imagem carrega em si todas as possibilidades de descrição que nenhum conjunto de palavras poderia desenvolver. Ver uma imagem reproduzida a partir de um original é, para o historiador da arte, ter a possibilidade de chegar mais perto daquilo que a obra de arte representa. Muito melhor do que qualquer palavra, a imagem copiada guarda traços consideravelmente similares e consegue estabelecer com o original uma relação muito mais próxima.

Com efeito, o poder relacional adquirido pela cópia sobre seu original, para Coli, também existiria entre uma obra de arte precedente a outra obra de arte. O exemplo que trouxe sobre o inacabado Atlas Mnemosine de Aby Warburg esclareceu a questão levantada.

Aby Warburg, através do Mnemosine, sonhava em escrever um tipo de história da arte sem palavras, utilizando apenas imagens. Coli diria que o atlas seria mantido por um princípio comparativo, criando relações de proximidade, disposição e ordem. Poderíamos ver como um objeto apareceria, sumiria e reaparecer novamente em outra obra, tudo isso graças aos contatos visuais propiciados pela comparação das imagens postas em seqüência. Tirar-se-ia das palavras qualquer poder dissertativo sobre a obra. No seu lugar, as reproduções das obras deveriam ser toda a apresentação necessária. Se por trás de um quadro existe sempre outro, e mais outro, nada melhor para perceber a maneira que estas relações são mantidas se não educando o olho a ver, quadro após quadro, elementos que se repetem, metamorfoseiam e somem em um dado momento.

Para a Coli, a beleza desse tipo de comparação estaria em um lugar além da presença física de uma mesma figura existente em diversos quadros ou na vida real. Ela estaria em um lugar que ficaria entre estas aparições, chamado por ele de terceira margem do rio. O renascimento de uma imagem em outra passa por algum lugar que não está, originalmente, em nenhuma delas, mas no indivíduo que as cria. Quando rapidamente citou o pintor Ingres, Coli ressaltou o fato da mesma figura reaparecer diversas vezes em seus quadros. Cada imagem pintada por Ingres que se repetia em outras de suas obras era concomitantemente a mesma e uma nova. A exploração de uma repetição enfática da figura sobrepujaria o valor imaginário daquela imagem para o pintor.

 Mas para Coli, não havia nenhuma outra pessoa que tivesse explorado mais a terceira margem do rio do que o romancista Marcel Proust. Fascinado desde novo pela fotografia, como atesta o fotógrafo Brassaï em Proust e a fotogragrafia, o escritor passou a vida a trocar retratos com pessoas que muitas vezes mal conhecia, apenas pelo prazer de descobrir e ver algo de suas personalidades revelado na imagem[2]. Além disso, tão importante a fotografia foi para Proust, que diversos personagens construídos em suas obras tiveram início e desenvolvimento na contemplação de fotografias de pessoas que conhecia na vida real.

Coli, em sua fala, afirmaria que Proust era fascinado pela repetição das imagens. O Romancista havia visitado diversas galerias de arte na Europa, mas era através de reproduções que tinha seu maior contato artístico. Ele se interessa bastante,  pela relação obra, réplicas e reproduções e o lugar que adquiriam para o seu observador. Num discurso anti-romântico sobre a aura da obra de arte, Proust acreditaria que entre reprodução e original existiam questionamentos muito mais complicados e importantes do que a consideração de ser a cópia um mero veículo que tentaria passar, sem sucesso, a essência da obra de arte.

Para exemplificar esta idéia, Jorge Coli retiraria trechos do famoso livro Recherche, onde podem ser lidas opiniões de Proust sobre o tema discutido. No romance, o narrador falaria em um dado momento sobre a igreja de Balbec. Ele nunca a tinha visto pessoalmente, apenas em reproduções fotográficas. Mas agora, parado ali, frente a frente com a igreja original, única, o narrador ficaria impressionado pela beleza do edifício. Ela era muito mais do que ele podia achar. No entanto, no parágrafo seguinte do Recherche, Coli mostraria que Proust, através do narrador, iniciaria uma desconstrução desta mesma opinião, quando declararia que a igreja “era menos também, talvez.” Inserida numa praça, rodeada por estabelecimentos e anúncios, sujeita a todos os imprevistos da realidade, a igreja parecia menos do que o narrador sempre achou. Sua aura, sentida por ele até então apenas através de reproduções, seria substancialmente reduzida (se não perdida) ao patamár da realidade cambiante, em que tudo se transforma e tudo se perde.

Para Coli, a idéia expressa nesse trecho proustiano era que o real estava aquém da obra. Ela era muito menos verdadeira do que a imagem criada através de fotografias por seu imaginário. A materialidade da obra de arte não significaria, para Proust, necessariamente a aquisição de uma aura pelo espectador, tal como defendia Walter Benjamim. O imaterial, ao contrário, ligado ao espírito, à imaginação, também poderia fornecer uma aura, e a reprodução fotográfica, como uma espécie de memória eterna, teria tanto ou mais poder que o original para elevar a imagem a este nível, a terceira margem do rio.

Jorge Coli, ao concluir, diria que para Proust, o essencial da obra de arte estaria fora do real, numa fusão entre imagem e imaginário, e que a obra em si guardaria traços materiais e imateriais em sua composição.

 



[1] Para um maior detalhamento das idéias de Benjamin ver BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In Mágia e técnica, arte e política - ensaios sobre a cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.

[2] Brassaï. Proust e a fotografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005.