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Texto de Diogo de Moraes produzido para o Fórum Permanente a partir da palestra A curadoria no campo expandido: pós-institucionalismo?, ocorrida no Centro Cultural São Paulo, na noite do dia 22 de novembro, proferida por Ann Demeester, diretora do De Appel Arts Centre (Amsterdam), mediada por Martin Grossmann, coordenador do Fórum Permanente e debatida por Ana Maria Tavares, artista e professora do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP.

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O trabalho [de arte] não quer mais ser um
substantivo/objeto mas um verbo/processo

Miwon Kwon

[RELATO]

Devido ao fato da palestra proferida pela curadora belga Ann Demeester, intitulada A curadoria no campo expandido: pós-institucionalismo?, tratar da problematização e reformulação dos formatos tradicionais das instituições artísticas, que tendem ao anacronismo frente as atuais práticas desenvolvidas pelos artistas da chamada arte site oriented, mostra-se oportuna e talvez necessária a análise deste segmento bastante influente no panorama da arte contemporânea internacional (inclui-se aí a produção de arte no Brasil), o qual, de um modo geral, se pauta em noções como processualidade, efemeridade, interdisciplinaridade, site specificity, discursividade e colaboração. Neste sentido, como forma de encontrar parâmetros, um pontual cotejo entre as práxis que caracterizam as artes modernista e contemporânea pode servir como plataforma para uma abordagem que contribua para a reflexão mais ampla acerca da necessidade e possibilidade de reinvenção das instituições artísticas, que, a título de discriminação, envolvem práticas museológicas em geral, procedimentos curatoriais, processos administrativos, modos de catalogação, conservação e extroversão dos trabalhos artísticos, políticas de financiamento e patrocínio, estruturas físico-arquitetônicas, formas de mediação com o público, estratégias de mercado etc. Este exame será aqui realizado antes dos comentários mais focados na fala propriamente dita de Demeester.

Além disso, este confronto entre formas significativamente distintas de produção artística, que lidam inclusive com pressupostos muitas vezes antagônicos, pretende fundamentar a hipótese de que a revisão e reestruturação das instituições artísticas são demandadas, senão forçadas, sobretudo pelas práticas empreendidas pelos artistas.

Apesar do risco de incorrer num esquematismo redutivo, torna-se imprescindível a exposição das diferenças entre as premissas que norteiam as produções modernista e contemporânea, até porque, como será visto mais adiante, as particularidades da produção de arte modernista influíram decisivamente para a constituição de uma determinada configuração institucional e espacial que lhe servisse de moldura, ou mesmo de câmara, sendo esta avessa às contingências temporais e contextuais, dentro do que se convencionou chamar de ‘cubo branco’, e que apresenta total sintonia com os princípios de pureza e autonomia das obras modernistas.

Como se sabe, a produção artística modernista, cujo marco inicial podemos localizar na obra do artista francês Edouard Manet, e que se estende pelo menos até a Escola de Nova Iorque, com o expressionismo abstrato, em obras de artistas como Jackson Pollock, Arshile Gorky, Willem de Kooning e Mark Rothko, arroga para si a missão de identificar e explorar as características particulares de cada meio expressivo com o qual trabalha, privilegiando acima de tudo a produção objetual, que, neste caso, pressupõe uma fatura artesanal apurada. A pintura e sua superfície bidimensional ou, para utilizar um jargão da crítica, sua ‘planaridade de superfície’ apresenta-se como a questão de maior destaque no discurso modernista em arte. Neste caso, já não interessa ao artista dissimular os limites da pintura, por exemplo, o fato de ela a rigor não gozar de profundidade e volume, mas afirmá-los como especificidades deste meio que devem ser percebidas e trabalhadas, abdicando de seu potencial ilusionista, que negaria e, por isso, trairia a sua natureza ‘planar’. Isto implica uma forma de trabalhar com o meio (neste caso talvez fizesse mais sentido falar em ‘fim’) que reivindica e busca sustentar a sua autonomia em relação às demais esferas, num processo de autocrítica constante. Tal empresa se efetiva através de composições plásticas ensimesmadas, resolvidas a partir de relações internas, e que evidentemente não se referem a nada que esteja situado além delas próprias, se endereçando sobretudo aos olhos do espectador, mais precisamente, à sua retina. Portanto, o que está de fato em jogo são os aspectos próprios à pintura, seus elementos formais constitutivos, como, por exemplo, cor, forma, estrutura, linha, composição, pincelada, ritmo, formato e dimensões da tela, textura etc. Trabalha-se num âmbito que se quer independente e puro, voltado para si mesmo, a partir de preceitos e dinâmicas próprios, praticados no interior de uma trincheira. Tudo isso sendo envolvido e movimentado por valores como estilo, autoria, originalidade e autenticidade. Evidentemente, todos estes princípios pressupõem um alto grau de especialização do artista, algo que será posto em cheque pelos artistas contemporâneos, como veremos mais a frente.

A esta pretensa pureza da arte modernista a arte contemporânea contrapõe uma vocação deliberadamente promíscua, principalmente em relação a assuntos e problemas que não pertencem ao campo específico da arte, e que se anuncia também através da profusão e das intersecções entre as mais diversas linguagens. Em vez de campo específico, ou de esfera autônoma, o que passa a ser ambicionado e explorado por considerável parte dos artistas, críticos e curadores contemporâneos é o campo expandido, justamente onde os distintos saberes, práticas, contextos e linguagens possam se aproximar e se influenciar reciprocamente. Como o próprio termo ‘campo expandido’ sugere, os limites rígidos entre a arte e aquilo que seria estranho e alheio ao seu universo deixam de vigorar. Já não é mais voltada para o lado de dentro do seu círculo que a arte empreende suas ações, mas para o lado externo de sua interface, o que não significa declarar a nulidade de uma possível e desejada especificidade da arte, e sim percebê-la aberta e interessada pelo que está situado além do seu próprio domínio. Assim, podemos designar a arte contemporânea como uma forma particular de pensamento/atuação transversal, que de modo algum dispensa uma elaboração lingüística sofisticada, muito pelo contrário, mas que não está interessada em se entrincheirar e nem em praticar apenas a autocrítica de determinados meios, apesar de tal reflexividade ser um ingrediente indispensável a um trabalho de arte consistente, não sendo o único, é claro. 

Numa perspectiva histórica, podemos encontrar a gênese da arte contemporânea em pelo menos três casos paradigmáticos, sendo que um deles surge prematuramente como uma anomalia no seio da arte modernista, trata-se de Marcel Duchamp. Os outros dois casos correspondem ao minimalismo e à arte pop, que surgem já na segunda metade do século XX. Mas talvez não convenha discorrer sobre cada um desses casos de maneira detalhada. Mais pertinente, aqui, seria registrar pontos em comum entre eles, comparando-os com algumas características da arte modernista, necessariamente divergentes. Aqui a noção de lugar, ou site, e suas diversas acepções, será crucial para o entendimento dessas semelhanças e diferenças, e poderá nos trazer importantes subsídios para a reflexão em torno da necessidade de novos formatos institucionais na contemporaneidade.

Justamente porque o objeto de arte modernista é produzido tendo em vista a exploração das particularidades do próprio meio expressivo do qual ele faz uso, seja pintura, escultura ou desenho, e não do meio ambiente em que ele é produzido e exposto, ele desconsidera os aspectos contextuais que o circundam e que configuram o lugar em que ele é inserido e apresentado, tanto no que se refere às circunstâncias sociais, políticas, econômicas e institucionais, quanto no que diz respeito ao espaço físico de exposição. Além disso, e por causa disso, ele demonstra uma pretensão de pertencer ao mesmo tempo a qualquer lugar e a lugar nenhum, como se o seu caráter auto-suficiente lhe garantisse uma universalidade desenraizada, permitindo-o circular e se presentificar em todo e qualquer lugar. O lugar, principalmente no que tange ao contexto institucional de exposição, é percebido como uma tabula rasa, um mero suporte destituído de particularidades, conteúdos e discursos próprios, que deve apenas acolher uma obra completamente independente a ele, posto que ela se resolve internamente.

Já nos três casos citados acima como precursores da arte contemporânea esta noção de lugar sofre uma guinada significativa e irreversível, visto que revela uma porção de coisas. O lugar, sobretudo a esfera institucional da arte, mas não só ela, é encarado então na sua realidade, como algo prenhe de particularidades, conteúdos e discursos, os quais preenchem e tingem as supostas vacuidade e neutralidade idealizadas pela arte modernista, compondo assim as proposições dos artistas contemporâneos (inclui-se aí o gesto avant la lettre de Marcel Duchamp) como aspectos constitutivos dos trabalhos. Por exemplo, um ready-made duchampiano não vale por si só enquanto peça de arte – não apenas por causa de sua intenção corrosiva e anti-artística – mas em relação e em conflito com a órbita legitimadora da arte institucionalizada, que confere artisticidade a tudo o que é lá colocado. Uma instalação minimalista é produzida especialmente para um determinado espaço, levando em conta e dialogando com seus atributos físico-espaciais. Uma serigrafia pop se deixa impregnar pela iconografia e pelos processos característicos do ambiente de comunicação e consumo de massa no interior da qual ela é produzida e, não raro, veiculada. O que se pode depreender desses breves e superficiais comentários é que o trabalho de arte contemporânea abandona um caráter apriorístico e independente em relação ao seu lugar de produção e apresentação. Tal lugar, seja ele físico, institucional ou discursivo fornece (ou mesmo impõe) elementos decisivos para a concepção e compreensão dos trabalhos. O que pode ser interpretado como um primeiro indício da vocação da arte contemporânea para o seu lado de fora, para o campo expandido.

Dito isso, cabe agora uma aproximação um pouco mais cuidadosa das diferentes acepções da noção de lugar, ou site, no cenário da produção artística contemporânea. Aqui, o conceito de site specificity permeará toda a abordagem. Num primeiro momento, que corresponde à década de sessenta, tal concepção e prática são exploradas por artistas ligados à vertente minimalista, como Dan Flavin, Carl Andre e Robert Morris, entre outros. Em suas propostas a galeria de exposição é percebida como um espaço específico, que traz consigo características físico-espaciais determinantes, e que, portanto, devem ser consideradas e exploradas na concepção dos trabalhos, os quais costumam se materializar em forma de instalações. Aí, espaço e objetos (instalados) convivem de forma dialética, num processo de influência mútua. O sentido do trabalho é deslocado do seu interior, do seu núcleo, para o contexto expositivo do qual ele passou a fazer parte. Cabe ao espectador vivenciar esta intervenção usando seu corpo de modo mais global, e não mais apenas seus olhos, através de uma experiência que se estende no espaço e se desenrola no tempo, justamente no tempo de observação e percurso em um ambiente ocupado por peças conhecidas por sua literalidade e exterioridade.

Até aqui a noção de site coincide com a espacialidade e fisicalidade de um lugar, no caso a galeria de exposição. Já em proposições de artistas praticantes da chamada crítica institucional, como, por exemplo, o alemão Hans Haacke, o site da arte deixa de corresponder apenas ao espaço físico da galeria, passando a equivaler também à estrutura cultural forjada pela instituição artística, num movimento de desmaterialização do site. Ou seja, a especificidade do lugar não é tanto apontada e trabalhada em termos físicos, mas num sentido sociológico, a partir do desvelamento de todo um aparato institucional que confina artistas, público e profissionais da área num sistema de relações sócio-econômicas comprometido com a lógica capitalista. Essas relações e seus personagens, além de serem tomados como um site em si, adquirem o status de conteúdo do trabalho artístico, que visa questionar a “inocência” do site da arte – de certa maneira cultivada pelos artistas minimalistas.

Já a partir da década de noventa intensifica-se a busca por sites localizados para além dos muros da instituição artística, na vida cotidiana, onde a cultura e suas diversas facetas podem ser tratadas e criticadas num sentido ao mesmo tempo mais abrangente e incisivo. Aqui, a expressão “para além dos muros da instituição artística” se refere principalmente a um abandono crescente por parte de alguns artistas da esfera especializada da arte, indicando tanto a saída do espaço físico institucional, quanto um desvio em direção a questões ligadas à realidade social mais ampla. Questões como a AIDS, a falta de moradia, a imigração, o homossexualismo, a prostituição, o racismo e a criminalidade, por exemplo, são percebidas e abordadas como sites pelos artistas, através de modos de atuação diversos. Este mapeamento se dá numa perspectiva discursiva, a partir de recortes que delimitam e abordam determinados assuntos, situações e localidades como campos de conhecimento, onde é possível praticar a troca intelectual e o debate cultural. Como se nota, há um forte desejo de aproximação e integração da arte com a esfera pública das relações sociais, o que é reforçado ainda mais quando se observa os locais em que tais projetos são desenvolvidos. Hotéis, ruas, favelas, prisões, prostíbulos, conjuntos habitacionais, além da mídia e seus diversos canais, são ocupados temporariamente por projetos artísticos que lançam mão de estratégias e procedimentos provindos das mais diversas disciplinas do saber humano, como a antropologia, a arquitetura, a sociologia, a psicologia, a arqueologia, a teoria da comunicação, a história etc. Vale ressaltar que muitos desses projetos se desenvolvem como processos de colaboração entre o artista e um determinado grupo de pessoas, geralmente identificado como o do outro cultural e/ou étnico. Logo, o site é formado pela convergência entre essas colaborações e as estruturas discursivas pré-existentes à aproximação do artista.   

Mas o “pingue-pongue” aqui proposto entre as premissas das produções modernista e contemporânea só adquire algum interesse para o presente texto, que se pretende uma reflexão a partir das questões levantadas por Demeester em sua palestra A curadoria no campo expandido: pós-institucionalismo?, na medida em que traz subsídios para a discussão acerca da possibilidade de renovação dos formatos institucionais. 

Portanto, agora devemos nos deter um pouco sobre as formas de apresentação dos objetos da arte modernista, tendo em vista a possibilidade de elas servirem de parâmetro de comparação para tratarmos dos novos modelos institucionais de extroversão e colaboração com trabalhos de arte contemporânea, sugeridos por Demeester. Aliás, debruçar-se sobre a questão dos modos de visibilização institucional da produção artística mostra-se crucial, visto que este é o momento em que os trabalhos são introduzidos na esfera pública, sendo compartilhados com outras pessoas.

Conhecido pela célebre expressão ‘cubo branco’, o espaço por excelência de exposição da arte modernista caracteriza-se por um tipo de ambiente que pode ser qualificado (ou desqualificado) de asséptico. Mas não são tanto os germes, ou não apenas eles, que devem ser expurgados deste recinto esterilizado que, em certo sentido, se assemelha a um templo religioso, e sim os ruídos, a luz natural, as possíveis irregularidades do interior arquitetônico, as contingências do acaso, o tempo e as mudanças, resumindo, o mundo exterior e a vida. Tais rechaços tencionam produzir naquele que adentra este ambiente supostamente imune à passagem do tempo uma sensação de eternidade e transcendência, cujo acesso seria representado pelo ‘cubo branco’. Além destes aspectos, o corpo do espectador também é barrado logo na porta. As únicas entidades bem vindas são os seus dois olhos e sua mente. Alguns até dirão que é preciso morrer para se estar lá dentro, pois o corpo e seus respectivos movimentos, ruídos, odores, vontades e desejos não são em hipótese alguma permitidos. Isso tudo se “justifica” por se tratar de uma câmara de estética, um recinto isolado destinado à apresentação e apreciação de objetos auto-suficientes, que são apreendidos em termos visuais. Além disso, esta rigorosa configuração é fruto de um discurso ideológico que busca garantir a continuidade e a legitimidade de valores, interesses e sensibilidade de determinado grupo ou classe social, que busca sua ratificação anulando qualquer indício ou possibilidade de transformação, este temível e implacável rebento do tempo.

É absolutamente evidente a inadequação deste modelo expositivo/institucional quando se trata de considerável parte da produção artística contemporânea, pelos fatores que já foram levantados neste texto e também por outros. Apesar disso, ele nos serve de parâmetro em negação ao qual podemos nos lançar na complexa tarefa de pensar os novos formatos de apresentação e colaboração – entre artista, público, curador e instituição – exigidos pelas práticas artísticas contemporâneas. Aqui, a fala de Demeester será privilegiada, trazendo importantes elementos para esta discussão.

* * *

Logo de saída, Demeester destaca que sua explanação se pauta na realidade institucional da Europa do norte, principalmente em países como Holanda, Bélgica e Suécia. Portanto, como ela adverte, a validade de seus apontamentos para o contexto brasileiro é apenas parcial, o que não pode ser de forma alguma desconsiderado. Enquanto no Brasil há uma enorme e urgente necessidade de consolidação das instituições artísticas, a Europa do norte desfruta de uma estrutura estável e eficiente, diferença esta que nos faz relativizar a suposta globalidade do contexto artístico.

A questão central de sua fala, como já foi mencionado, diz respeito à busca de novos formatos para as instituições artísticas na contemporaneidade, que estejam atentos e em consonância com as práticas artísticas atuais. A primeira pergunta lançada então por Demeester é sobre a pertinência e a real necessidade do prédio expositivo equipado e destinado às mostras de arte contemporânea. Esta dúvida é um sintoma (por revelar uma perturbação) da discrepância entre a instituição artística tradicional e as propostas dos artistas que lidam com o campo expandido, com um fora que engloba a esfera da virtualidade, o universo midiático e o campo social da vida cotidiana. Na esteira desta indagação, Demeester se pergunta sobre uma possível dispensa da moldura institucional por parte de determinados projetos artísticos. Um dos motivos disso é o crescente abandono, pelos artistas, da produção objetual, que dá lugar a processos efêmeros e quase invisíveis. Esta atitude pode ser interpretada como um desejo de afastamento das instituições artísticas, pelo menos no que se refere ao seu caráter conservador. De acordo com Demeester, nas instituições há ainda uma forte demanda e fixação por objetos, e as relações entre curador e artista acontecem segundo um padrão hierárquico.

A partir destas considerações, não seria possível pensar em um contato direto entre as proposições dos artistas e o público, sem a necessidade da mediação institucional? As instituições não se tornaram redundantes? Ou então, numa direção alternativa, não seria mais interessante e proveitoso trabalhar para a renovação e reinvenção destas instituições e suas metodologias, tornando-as mais flexíveis e, portanto, consonantes com as práticas artísticas atuais, que trabalham de forma processual? Demeester defende esta última idéia, contando com uma organização institucional menos rígida, mais solta e espontânea, com curadores que se dediquem às proposições dos artistas de forma mais sintonizada e imaginativa.

Como forma de contextualizar esta mobilização rumo à reestruturação dos modelos institucionais em arte, Demeester faz menção à década de noventa, mais especificamente, à sua segunda metade, quando passa a se manifestar com maior ênfase o desejo por um novo tipo de instituição. Neste momento, surge na Europa do norte um movimento cunhado pelo termo ‘novo-institucionalismo’, atribuído pelo curador escandinavo Jonas Ekberg. Tratava-se de um modelo que se pretendia renovador, e que incorporava inclusive as críticas institucionais feitas pelos artistas. Existia aí uma maior preocupação com o público e seus diversos segmentos. A exemplo das práticas artísticas contemporâneas, os procedimentos se tornaram mais maleáveis e menos burocráticos, podendo assim dedicar uma atenção maior àquilo que era temporário e processual, a partir da renúncia a uma estrutura rígida. Dentro de um conjunto que se queria democrático, era almejada a participação dos diferentes públicos, entendidos para além da mera condição de observadores passivos, no sentido de aproximá-los tanto das obras quanto dos artistas e seus processos, em situações de caráter dialógico em que eram incitados a se manifestar. Um exemplo deste tipo de instituição é o Rooseum, sediado na cidade de Malmö, na Suécia. Em instituições como esta, as abordagens em torno das propostas dos artistas adquiriam um acento discursivo, através de encontros, palestras, debates e oficinas, situações estas propícias a uma abordagem detida dos assuntos envolvidos nos projetos artísticos, numa perspectiva reflexiva e crítica. Por conta das características de tais projetos, muitas vezes estes eventos discursivos ganhavam uma importância maior do que a própria exposição, como sugere Demeester. Isto se explica, entre outras coisas, pelo fato dos trabalhos artísticos não se pautarem em questões puramente estéticas, mas em problemas de natureza discursiva e contextual.

Nas antípodas do formato assumido pelo ‘cubo branco’, as instituições comprometidas com o ‘novo-institucionalismo’, aqui exemplificado pelo Rooseum, não se viam como campos autônomos, isolados, mas como esferas permeadas e comprometidas com a sociedade, arrogando para si a responsabilidade de reagir às mudanças políticas e sociais. Assim, buscavam assumir o caráter de centros comunitários, pontos de encontro entre artista, público, curador e profissionais de áreas distintas, não restringindo seus programas à promoção de exposições. De forma análoga aos procedimentos dos artistas com os quais trabalhavam, estas instituições atuavam a partir de operações interdisciplinares, promovendo intersecções entre diferentes funções sociais e áreas do conhecimento.

Porém, como ressalva Demeester, há muitas coisas a serem criticadas nas instituições norteadas pela noção de ‘novo-institucionalismo’. Apesar de sua abertura e vocação democrática, elas geralmente criavam um novo tipo de elitismo, principalmente em virtude de as pessoas que não desfrutavam de um conhecimento mais consistente no campo da arte contemporânea não conseguirem ou não se sentirem encorajados a se envolver efetivamente com as atividades discursivas propostas. Tais eventos atraiam muito mais aqueles que já possuíam, além dos subsídios e instrumentos intelectuais necessários para lidar com os assuntos abordados, uma familiaridade maior com o circuito artístico e seus agentes, o que acabava gerando um exclusivismo. Outro aspecto problemático, do ponto de vista de Demeester, era o fato de o ‘novo-institucionalismo’ cultivar valores como hospitalidade e generosidade, que acabavam por configurar uma postura institucional um tanto passiva, de espera. Em contraponto a isso, Demeester defende a necessidade da instituição estimular seu público de forma estratégica, entendendo que este não surgirá e, muito menos, se envolverá de forma espontânea com as atividades oferecidas pela instituição, principalmente quando se trata do público não-iniciado. Além disso, ao se depararem com um panorama de produção artística que lida com a arte em termos de produção de conhecimento – e que portanto está a todo momento repensando e reinventando seus procedimentos – essas ‘novas-instituições’ apenas davam conta de privilegiar o tipo de arte que podia ser facilmente categorizada, o que representava uma limitação comprometedora. E, para completar o quadro, essas instituições enfrentavam enormes dificuldades para provar ao Estado sua eficiência e produtividade, devido principalmente ao número muito baixo de visitantes que as freqüentavam. Com isso, passaram a sofrer uma crescente falta de apoio e financiamento, o que provocou o fim do ‘novo-institucionalismo’.

Para Demeester, é fundamental evocar e refletir sobre este passado institucional recente, visto que ele pode nos informar sobre os acertos e falhas no processo de reinvenção dos formatos institucionais. A busca por novas metodologias, que trilhem um caminho diverso ao proposto pelo ‘novo-institucionalismo’, mas considerando suas contribuições para o debate, é algo que tem surgido com força na Escandinávia e também na Holanda, sob o nome de ‘pós-institucionalismo’.

Este movimento surge como uma alternativa em países que contam com um grande número de instituições de formatos tradicionais consolidadas, que, de maneiras diferentes, tentam acomodar e discutir a arte contemporânea (justamente aqui pode-se perceber uma diferença decisiva em relação à situação brasileira, vide a precariedade de sua mais importante instituição, a Bienal de São Paulo). Os envolvidos com o ‘pós-institucionalismo’ entendem que há um número excessivo de instituições desta espécie na Escandinávia e na Holanda, e que, portanto, devem ser criadas iniciativas concomitantes – a estas já consolidadas – de retorno a um sistema mais solto, espontâneo e intuitivo. Iniciativas que não almejem a longevidade, permitindo uma gama maior de possibilidades de atuação e inserção na esfera pública.     

Neste sentido, Demeester faz referência ao texto Ascensão e queda do novo institucionalismo, de Nina Montmann, no qual se pode encontrar passagens relativas a práticas institucionais alternativas levadas a cabo na Ásia, mais precisamente, na Índia e na China, e que de certa forma poderiam indicar direções para aqueles que são se dedicam à vertente ‘pós-institucionalista’. Estruturas mais dinâmicas vêm sendo experimentadas nesses países, o que tem conferido uma vitalidade notável aos seus respectivos circuitos. Demeester destaca que tais iniciativas são sempre coletivas, e que abandonam o modelo tradicional que concentra as decisões e o poder nas mãos de um diretor. Algumas delas inclusive são administradas por artistas. Neste ponto, entre parênteses, cabe evocar de passagem algumas iniciativas deste e de outros gêneros desenvolvidas por artistas no Brasil, tal como as galerias 10,20 X 3,60 e A Gentil Carioca, o Ateliê 397, a Casa da Grazi, o Rés do Chão, a Casa da Xiclet, o Torreão, entre outras.

As experiências asiáticas citadas no texto de Montmann acontecem num registro interdisciplinar, desenvolvendo projetos que não se limitam ao campo das artes visuais. Neste caso, percebe-se uma afinidade com o que vinha sendo proposto pelo ‘novo-institucionalismo’. Mas no que concerne ao tempo de vida das iniciativas e às suas estruturas físicas, as experiências asiáticas diferem bastante do modelo ‘novo-institucionalista’. Segundo Demeester, a viabilidade de determinadas iniciativas indianas e chinesas independe de uma estrutura arquitetônica, de um espaço físico para receber exposições. Na maior parte dos casos, pequenos escritórios servem de sede a partir da qual os envolvidos operam num movimento de irradiação, seja através da web em espaços virtuais, seja através da intervenção direta em espaços urbanos. Além disso, se dedicam ao que está sendo feito no presente, no agora, com todo frescor e nebulosidade que isso implica, o que é possível principalmente graças a uma espécie de despreocupação com a manutenção e longevidade das iniciativas.

Contudo, como alerta Demeester, não faria sentido importar este modelo asiático para a Europa do norte. A situação das instituições artísticas desses países é, de longe, menos favorável que a da Europa do norte. Estas iniciativas, que gozam de pouca ou nenhuma estabilidade, surgem como reações possíveis e alternativas em um contexto desfavorável em termos institucionais, como forma de manter a respiração crítica e criadora em atividade.

Provida de uma estrutura institucional consistente, a Europa do norte, de acordo com a sugestão de Demeester, deve levar em conta esses exemplos asiáticos, não no sentido de reproduzi-los, o que representaria um grande equívoco, mas como influências a serem aproveitadas e recontextualizadas pela corrente ‘pós-institucionalista’. Então, não seria o caso de abrir mão dos edifícios e de toda a infra-estrutura que os abastece e sustenta, muito menos posicionar-se à margem da cena institucional, mas pleitear uma posição que podemos chamar de oblíqua, visto que não é nem perpendicular (que corresponderia a um outro eixo, a parte) e nem paralela em relação às convenções institucionais, o que obviamente pressupõe uma forma estratégica de atuação. Esta obliqüidade traduz-se em atributos como a disposição para uma constante mutação, a abertura para os mais diversos avatares, a multiplicidade de abordagens, o desejo de ser um organismo vivo, um animal atento, a inclinação para o ‘além muro’, para o espaço público da vida cotidiana – em complemento às atividades discursivas e expositivas ocorridas no interior das instituições – a vocação promíscua, o interesse por colaborações de várias naturezas, a pluriformidade e uma atenção aguda àquilo que os artistas estão propondo, percebendo-os como os grandes agentes criadores.

Tais são as premissas que vêm direcionando a atuação de Demeester como diretora do de Appel arts centre, fundação artística sediada em Amsterdam, Holanda. Articulado a isso, ela usa uma metáfora extraída do romance A casa das folhas, de um autor cujo nome escapa ao conhecimento de quem redige estas linhas, que se aplica muito bem às instituições artísticas verdadeiramente comprometidas com as questões contemporâneas. Segue abaixo a transcrição desta fala de Demeester, finalizando este texto:

No romance, ele [o autor] descreve a casa de um cineasta, o qual descobre que há nela um “problema”. A cada manhã aparece uma sala nova. Num determinado momento, ele [o cineasta] descobre uma caverna infinita. A casa se expande e se encolhe, ela se mexe, ela se transforma, e ela se adapta ao estado mental das pessoas que moram dentro dela. Então a casa é um tipo de organismo vivo, ela reage à psicologia e às necessidades das pessoas que nela moram. 












REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS   



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