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Arte contemporânea e Natura: a expansão do território do museu

relato por Ilana Seltzer Goldstein

Uma mesa com algumas surpresas

Antes de mais nada, é preciso registrar que esta mesa de debates ofereceu algumas surpresas ao público. A primeira foi que o convidado francês Laurent Le Bon não pôde comparecer, por problemas pessoais de última hora, de modo que seu texto foi lido pelo mediador da sessão, Felipe Chaimovich. No momento do debate, contudo, Le Bon esteve virtualmente presente, pois respondeu às perguntas por meio de um áudio instalado ao vivo. Um segundo aspecto que talvez tenha surpreendido a platéia foi ter se discutido tanto sobre a valorização do patrimônio por meio da arte contemporânea, como sobre a relação entre arte e natureza. Por fim, a terceira surpresa foi a presença de Frans Krajcberg, no final da mesa, fato que faz com que o presente relato rompa com a seqüência lógica convencional e comece pelo fim.

Como uma lenda viva, o artista de origem polonesa, famoso por incorporar em sua obra árvores incineradas, subiu ao palco nos momentos finais, para lançar seu clamor pela paz entre os homens e pela reconciliação entre homens e natureza. Krajcberg aparentava cansaço - não apenas por causa da idade avançada, mas certamente também pelas marcas que a vida lhe deixou, desde a trágica perda da família na Segunda Guerra Mundial, até o desprezo e as ameaças a ele endereçados por seus vizinhos, no sul da Bahia.

Provavelmente, o nome dessa mesa tenha sido inspirado pela bela e ampla retrospectiva do artista montada no subsolo da exposição comemorativa dos 60 anos do MAM, que ficou em cartaz na OCA até 14 de dezembro. Frans Krajcberg: Natura reunia 65 esculturas e quarenta fotografias unindo força plástica e militância socioambiental. Na abertura da mostra, a atriz Cristiane Torloni leu o “Manifesto do Rio Negro”, assinado em 1970 por Franz Krajcberg, Pierre Restany e Sepp Baendereck, no qual os três pregam o desprezo por disputas por poder, a busca de uma consciência planetária e a valorização da percepção da natureza: “o naturalismo como disciplina de pensamento e da consciência perceptiva (...). Trata-se de lutar muito mais contra a poluição subjetiva do que contra a poluição objetiva (...) A natureza original deve ser exaltada como uma higiene da percepção e um oxigênio mental”. [1]

Em recente entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, [2] Krajcberg comentou que a exposição na OCA foi sua primeira grande retrospectiva em São Paulo, mas que não gosta de falar de sua obra como algo artístico: “Meu trabalho é minha revolta, meu grito contra a barbárie que o Homem pratica”, afirmou. Com efeito, seu trabalho e sua postura rompem claramente limites e deixam à mostra a interpenetração entre vida e obra, entre arte e sociedade.

   

Digressão: diálogos entre arte e natureza

A natureza serviu de inspiração, matéria prima, tema ou ambiente expositivo a inúmeros outros artistas, além de Krajcberg. Antes de passar ao relato da mesa de debates propriamente dita, vale a pena lembrar de alguns nomes e obras, a fim de revelar o quão rico e multifacetado tem sido o diálogo entre arte e natureza.

Comecemos o exercício de memória por nomes europeus consagrados. O pintor inglês John Constable (1776-1837) foi um dos pioneiros em considerar os efeitos das mudanças da luz e das condições atmosféricas em nossa percepção da natureza. Constable, que fez da natureza seu tema principal, dava especial atenção ao céu e às nuvens, que registrou em inúmeros estudos. Tornou-se referência para os pintores de paisagem e seu uso livre da cor despertou a admiração dos impressionistas franceses. Entre eles Claude Monet (1840-1926), cuja tela “Impressão, Sol Nascente” (1869), acabou dando nome a todo um movimento artístico - embora a partir da depreciação de um crítico, que chamou seu grupo, pejorativamente, de “impressionista”. Monet costumava pintar em meio à paisagem, o que era algo totalmente novo e, além disso, fazia séries de um mesmo motivo em diversas horas do dia e em diferentes estações do ano. Os pintores que se reuniram em torno de Claude Monet também pintavam fora dos ateliês, ignoravam a profundidade da tela e a precisão dos contornos. Mas talvez a inovação mais importante do grupo tenha sido o fato de, ao invés de misturarem as cores na palheta, preferirem encher a tela com pinceladas de tintas puras separadas, que se combinavam e se misturaram apenas nos olhos do espectador.

John Constable

John Constable. “Paisagem com nuvens”, 1922.

"imagem retirada do site http://www.chrislee.org.uk/InspiringCreativity/GR023%20-%20John%20Constable%20-%201776-1837%20-%20Landscape%20with%20Clouds%20-%20ca%201821-22.jpg"

  

Em solo brasileiro, podemos destacar o autodidata José Pancetti (1902-1958), filho de imigrantes italianos pobres, que teve diversas ocupações antes de se consagrar como pintor. Foi ao se alistar na Marinha, onde ficou até 1946, que Pancetti descobriu sua paixão pelo mar, um dos elementos mais presentes em suas telas figurativas, que retratam paisagens brasileiras, especialmente marinhas. Já Margaret Mee (1909-1988), inglesa que se mudou para o Brasil na década de 1950, ficou tão fascinada pela exuberância da Mata Atlântica, que começou a pintar as plantas e flores que encontrava em seus passeios. Mee realizou 15 expedições à Amazônia, durante as quais colecionava plantas. Em 1962, em virtude de sua minúcia na representação da flora brasileira, foi convidada pelo Instituto de Botânica de São Paulo para ilustrar a seção de bromélias da Flora Brasílica e, em 1968, colaborou em um livro sobre as orquídeas brasileiras. Na década de 1980, Margareth Mee passou da ilustração à militância: viajou à Inglaterra e aos Estados Unidos para chamar atenção sobre a devastação crescente das florestas tropicais e criou uma fundação com seu nome.

Margaret Mee

Margaret Mee. Neoregelia margaretae. Grafite e guache sobre papel, 1981.

"imagem retirada do site http://www.serathiuk.eng.br/wp-content/uploads/2007/07/margaret_mee_450.jpg"

  

Dentro da chamada land art, os exemplos de imbricação entre arte e natureza são ainda mais eloqüentes. Richard Long (1945) utiliza pedras e lama como matérias-primas e integra o ato de caminhar na paisagem como parte de seu processo criativo. Dos seus longos passeios e da marca de seus passos resultam esculturas, fotografias e textos, tentativas de documentação de trabalhos que só existem in natura. O escocês Andy Goldsworthy (1956), por sua vez, rompe com a noção de que a arte deve ser exposta e preservada. Goldsworthy cria belas composições com elementos orgânicos encontrados em seus passeios pela natureza: galhos, folhas amareladas do outono, pedras, neve. Constrói com eles desenhos, estruturas geométricas, espirais, labirintos. Como tais criações são efêmeras – pois são destruídas pelo vento, pelas chuvas, pelo mar e pelo tempo –, o artista lança mão do registro fotográfico.

Andy Goldsworthy

Andy Goldsworthy. “Carefully broken pebbles scratched white with another stone”. St. Abbs, Escócia, junho de 1985.
   

"imagem retirada do site http://www.goldsworthy.cc.gla.ac.uk/images/l/ag_03285.jpg"

 

Um caso em que a militância fica mais explícita é o de Yann Athus-Bertrand, fotógrafo francês conhecido por suas tomadas aéreas de grande escala, retratando paisagens ameaçadas de destruição em virtude do “progresso”. A série “La Terre vue du ciel”, impressionante tanto pelo poder de denúncia, como pela beleza plástica, ficou inicialmente exposta em outdoors em torno do Jardin de Luxembourg, em Paris, em 2001 e, desde então, correu o mundo. Em São Paulo, as fotos puderam ser vistas no SESC Pompéia, há alguns anos atrás. As fotos da série “A Terra vista do céu” retratam oceanos, desertos, ilhas, montanhas, plantações sob ângulos inusitados e tirando partido das formas e cores naturais. Do ponto de vista da militância ecológica, cabe ressaltar que Yves Bertrand cedeu seus direitos autorais para a ONG “repórteres sem fronteiras”, para que usem as imagens gratuitamente em campanhas contra a destruição do planeta. E preside uma entidade voltada ao desenvolvimento sustentável.

Yann Athus-Bertrand

Yann Athus-Bertrand. “Bora-Bora, Polinésia Francesa”, fotografia de corais ameaçados pela poluição, s.d.

"imagem retirada do site http://www.yannarthusbertrand2.org/index2.phpption=com_datsogallery&func=wmark&mid=995"

  

Dentre os artistas contemporâneos, não há como deixar de mencionar o inglês Damien Hirst, provoca reflexões sobre a natureza em suas instalações - como aquela em que expôs centenas de moscas voando (que morriam pouco a pouco sob os olhos do espectador), ou uma outra em que dispôs, na galeria, pedaços de animais mutilados conservados em formol. Ambas pretendiam remeter à frieza e à assepsia da morte contemporânea. O jovem dinamarquês Olafur Eliasson, por sua vez, utiliza os processos da natureza como parte integrante de seus trabalhos: suas instalações e fotografias contêm marcas de umidade, neblina, água, luz solar, gelo, sempre em estado de transformação, para que o espectador tenha uma experiência ativa e individualizada em relação à obra. Na galeria Marc Fox, de Los Angeles, por exemplo, fez um recorte circular no teto, para que entrassem raios solares - que mudavam de intensidade e de lugar ao longo do dia; já no museu de Bregenz, no sul da Áustria, criou um lago artificial no qual deixou crescerem microorganismos e algas, processo de multiplicação biológica que o visitante observava de cima de uma ponte.

Olafur Eliasson

Olafur Eliasson. ”The mediated motion”, instalação na Kunsthaus Bregenz, em 2001.

"imagem retirada do site http://www.serpentinegallery.org/mediated-motion275.jpg"

 

Trabalhando com a perversidade e a assimetria de poder – que servem tão bem para pensar a relação entre os seres humanos e as outras espécies -, Marco Evaristti colocou, no museu dinamarquês Trapholt, 10 peixinhos dourados nadando dentro de eletrodomésticos como batedeiras e liquidificadores. Aos visitantes era permitido ligar e desligar os aparelhos quando quisessem, “transformando o conteúdo da obra em sopa de peixe”, como se lia nas instruções. Organizações de defesa dos direitos dos animais fizeram com que a exposição fosse proibida e a CNN abriu um espaço em seu site na internet para o público americano se manifestar a respeito da obra.

Marco Evaristti

Marco Evaristti. “Golden Fish”, 2000.

"imagem retirada do site http://www.myartspace.com/blog/uploaded_images/Goldfish-730948.jpg"

 

Uma experiência ainda mais radical foi feita por um brasileiro que criou um coelho com genes de vaga-lume, para que brilhasse no escuro. O animal morreu na noite do vernissage do evento parisiense “Art Outsiders” e o artista circulou apenas com uma camiseta em que sua foto fosforescente estava estampada. Mais do que excentricidade isolada, a coelha Alba era parte de uma obra complexa e coerente: Eduardo Kac se insere numa nova tendência de cruzamento entre arte e ciência. A partir de trabalho conjunto de artistas plásticos, engenheiros, biólogos e especialistas em computação, a idéia é quebrar fronteiras, para suscitar reflexão sobre a bioética, ou seja, sobre a criação de novas espécies e a manipulação genética de espécies já existentes. Nesse sentido, foi emblemática a instalação microscópica “Gênesis”, em que Eduardo Kac oferecia ao público a possibilidade de brincar de Deus: numa lâmina circular, ligada eletricamente a um computador, encontravam-se bactérias geneticamente modificadas, que se multiplicavam mais ou menos de acordo com o comando que o visitante desse no computador.

Certamente o leitor se lembrará de muitos outros trabalhos e artistas que não foram aqui mencionados. O curioso é que poucos deles fizeram parte do debate da mesa “Arte Contemporânea e Natura”. Em parte, porque há, hoje, muito mais artistas do se imagina trabalhando com essa proposta e em parte porque, ao contrário do que o título da mesa sugeria, as falas – nem por isso, menos interessantes – se debruçaram principalmente sobre projetos e nomes que trabalham a interface entre patrimônio cultural, identidade e arte contemporânea. Passemos, então, a elas.

  

A experiência do Centro de Arte e Natureza de Huesca: paisagem como arte

Teresa Luesma dirige o Centro de Arte e Natureza de Huesca, na Espanha, localizado em uma pequena cidade de 50 mil habitantes. Ela trabalha há 20 anos no ramo e disse que nunca viu uma discussão tão grande como nos últimos anos, sobre novas maneiras de expor e de envolver o público. “O novo visitante faz perguntas, tira suas conclusões e defende o direito à interpretação”, afirmou. “A maioria dos museus e centros de arte que apenas conservavam o patrimônio, hoje tem a demanda de transformar seus conteúdos em uma experiência significativa”.

Segundo a palestrante, a paisagem se transformou com grande velocidade nas últimas décadas e isso requer novas formas de abordagem e de proteção. “As organizações civis, os museus e administrações públicas devem trabalhar com a formação, o estudo, a investigação e interpretar a própria paisagem como arte”. Nesse contexto, decidiu criar o Programa Arte e Natureza. Trata-se de algo bem mais amplo que um parque de esculturas, pois abrange uma área de 15.000 km2, que corresponde a toda área de Huesca, composta pelas montanhas dos Pirineus, zonas desérticas e antigos vilarejos interioranos.

O próprio edifício do Centro de Arte e Natureza de Huesca dialoga com a paisagem do entorno. Teresa contou que existe uma formação geológica típica daquela província, caracterizada por rochas onduladas e que a arquitetura do museu incorporou esse elemento em sua fachada marcada por ondas.

Fachada do Centro de Arte y Naturaleza

Fachada do Centro de Arte y Naturaleza de Huesca, na Espanha.

"imagem retirada do site http://www.vivercidades.org.br/publique222/media/veranistas_Moneo.jpg"

  

Os artistas convidados pelo Programa Arte e Natureza têm liberdade de escolher onde querem colocar suas obras, mas as comunidades e prefeituras locais devem aprová-las antes. Teresa explicou que ”o projeto é difícil de ser administrado e lento. Só após a aprovação do projeto é que começa a construção. Não há choques, nem surpresas para a comunidade”.

Inicialmente, o objetivo era trabalhar com o conceito de arte pública, convidando jovens artistas espanhóis para interferirem em pequenos vilarejos – entre os quais Manolo Paz, Christine Boshier e Ricardo Calero. Por meio da instalação de trabalhos escultóricos na paisagem da região, a idéia era se apropriar do espaço já existente e convertê-lo em uma paisagem nova. “A obra é o lugar, os artistas criam no lugar, a paisagem é considerada por eles como meio de expressão da cultura”, sintetizou Teresa.

Num segundo momento, foram convidados artistas internacionais – entre os quais Franz Krajcberg – para estudar projetos do gênero, debater políticas de exposição e criar uma coleção de obras que estabelecessem relações entre arte e paisagem. Richard Long, por exemplo, caminhou pelo território de Huesca e reorganizou pedras em círculo no Pico de La Maleta. Expôs, dentro do museu, círculos de pedra semelhantes. Já Ulrich Rückriem escolheu uma parte da província tomada por plantações agrícolas e colocou lâminas de pedra, tanto perto das plantações, como na área próxima ao Centro de Arte, propondo uma aproximação entre rural e urbano.

Ulrich Rückriem

Ulrich Rückriem. “Século XX”. Instalação em plantação e próximo ao museu de Huesca, 1995.

"imagens retiradas dos sites http://www.dphuesca.es/pub/imagenes/ficha/imagenes_Rukriem_f58db901.jpg E http://www.cdan.info/web/Boletines/0709/images/0709_Ulrich_Ruckriem_pq.jpg"

  

A artista iraniana Siah Armajani, para quem “a arte não é exclusivamente estética, ela deve ajudar o cidadão a ser mais cidadão”, perguntou a determinada comunidade dos Pirineus o que queria. A resposta foi: uma mesa de piquenique para colocar ao ar livre. Armajani, então, projetou um espaço coberto com capacidade para acolher 30 pessoas, que serve como local de reunião, de leitura pública e de contemplação da montanha.

Siah Armajani

Siah Armajani. “Mesa de Pique-nique”. Instalação em Huesca, 1995.

"imagem retirada do site http://farm2.static.flickr.com/1401/1476006976_2f91892208.jpg"

  

Fernanda Casas, que passou a vida toda no Rio de Janeiro e sempre se preocupou com o desmatamento da Amazônia, criou uma intervenção que trata “árvores como arqueologia”. Inspirou-se no fato de que nessa área havia grandes coníferas pretas, que desapareceram totalmente, para colocar oito troncos carbonizados dessa espécie, junto com duas árvores de outra região que ainda estão vivas. A proposta de Fernanda era suscitar reflexão sobre a destruição da paisagem.

Um dos muitos pontos interessantes do trabalho desenvolvido por Teresa Luesma e sua equipe é que “a instituição de arte de Huesca é pequena, apenas recebe desdobramentos das obras criadas na paisagem. Não é que a obra é levada do museu para fora, é o contrário”. Embora a maioria das peças fique fora do museu, indicada por placas de sinalização espalhadas pelo território de Huesca, desde 2006 existe um espaço de referência e documentação no museu. Além disso, a instituição organiza seminários sobre arte pública, paisagem e memória, paisagem e patrimônio e edita um boletim mensal em seu site.

A palestrante fechou sua fala com uma reflexão que sugere que não é possível se pensar em uma paisagem natural que não seja ao mesmo tempo cultural: “a paisagem não é sempre a mesma, depende de quem olha. O olhar faz a paisagem”. Nesse ponto, a visão de Teresa Luema converge com a de Olafur Eliasson, que declarou em entrevista, a propósito de seu trabalho “Green River”: “Foi interessante quando a água no campo islandês ficou toda verde; parecia uma pintura, uma representação. Pensei que poderia deixar a paisagem ainda mais real ou hiper-real, a alterando com o impacto da cor. (...) O que é natureza? E quem se importa com essa constante procura pela fronteira entre cultura e natureza, re­almente? Se existe uma natureza, eu chego até ela por meio das pessoas que estão lá e suas idéias sobre onde elas estão”. [3]

  

Versailles OFF: uma experiência que une presente e passado

O texto de Laurent de Bon lido por Felipe Chaimovich explicava que Versailles OFF é um projeto que surgiu em 2004, para mostrar que “Versailles não é um modelo congelado de uma época única, mas fruto de uma estratificação complexa de olhares e intervenções, inclusive a contemporânea”. A proposta do curador do projeto é romper clichês associados ao famoso castelo, situado nas proximidades de Paris. “É preciso propiciar novos pontos de vista em relação a um espaço que todos pensam conhecer”.

O evento, anual e gratuito, consiste na construção de um itinerário sinuoso nos jardins e dependências do palácio de Versailles, que leva o visitante a transitar por cantos inusitados e pouco explorados desse imenso complexo, de modo fazê-lo olhar para elementos arquitetônicos e paisagísticos sob novos ângulos. As intervenções artísticas instaladas ao longo desse itinerário, por sua vez, procuram despertar emoções e surpresas relativas aos cinco sentidos, convidando o público a estabelecer novas relações com aquele ícone do patrimônio histórico e cultural francês.

Nas palavras de Laurent Le Bon, que é também curador do Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Pompidou, em Paris, no caso de Versailles OFF, “não se trata de um mero alinhamento de esculturas: a iniciativa repousa sobre um programa. Trata-se de mostrar um Versailles sempre em atividade. (...) E os artistas contribuem com a invenção de novos pontos de vista. A instalação de obras contemporâneas em determinados espaços tem poder desacelerador”.

Segundo Le Bon, na penúltima edição, o percurso em espiral começava perto da entrada e depois contornava o palácio, entrando na cozinha, nas estrebarias, passando pela horta criada no século XVIII, pela estufa, pelas salas de baile de Louis XIV, subia uma escadaria e terminava com uma perspectiva dos jardins. O percurso durava uma hora, em média, e não houve congestionamentos.

O caminho compreendia uma dezena de etapas identificadas e associadas a trabalhos de dez artistas. Essa divisão facilitou a busca de mecenato, pois cada local pôde ser associado a um patrocinador. Vários domínios da criação são envolvidos a cada edição: música, gastronomia, arquitetura e artes plásticas. “A manifestação é destinada a encontrar o artista e a obra certos em relação ao espírito da caminhada. Uma publicação com foto área e informações patrimoniais é distribuída aos visitantes. Há locais mágicos, surpreendentes, abertos especialmente para essa manifestação”, escreveu Le Bon.

Gino de Dominicis

Gino de Dominicis. “Calamita Cósmica”. Instalação ao ar livre, perto do canal. Versailles Off, 2006.

"imagem retirada do site http://www.vvork.com/wp-content/uploads/2008/02/dominicis.jpg"

     

Em 2008, a opção foi convidar um único artista para expor nos aposentos reais e nos jardins de Versailles. Jeff Koons foi o escolhido: 17 trabalhos seus, criados nos últimos 30 anos, quebraram a solenidade da decoração barroca do castelo e provocaram muita polêmica entre os franceses. A seleção das peças foi feita pelo próprio artista, que nunca tinha realizado uma grande retrospectiva na Europa. Na parte externa, Koons criou uma instalação com mais de 100 mil flores, que parece metade com um cavalinho de pau, metade com um dinossauro de desenho animado.

Jeff Koons

Jeff Koons. Escultura com flores lembrando imaginário infantil. Versailles, 2008

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Jeff Koons 1

Jeff Koons. Peça exposta no interior do Palácio de Versailles, entre setembro e dezembro de 2008

"imagem retirada do site http://lh6.ggpht.com/_ntoQ5xYs6Xc/SNQPG4hiN4I/AAAAAAAAA6g/sm9_wmwvfuM/IMG_2151.JPG"

    

MAM: o museu nômade

A fala do mediador da mesa teve como argumento central a idéia de que o edifício e o espaço próprio nem sempre são condições definidoras da identidade de uma instituição museológica. Ao menos no caso do Museu de Arte Moderna, Felipe Chaimovich mostrou que isso é verdade, ao fazer uma rápida retrospectiva dos sucessivos deslocamentos da entidade durante seus primeiros quinze anos.

O MAM migrou várias vezes nesses sessenta anos e nunca ocupou um prédio construído só para ele. Hoje temos o privilégio de coabitar com um parque considerado uma das mais belas regiões da cidade. Mas a instalação do MAM no Ibirapuera foi posterior à criação do museu. Inicialmente Matarazzo ofereceu espaço dentro de sua metalúrgica, à Rua Caetano Pinto. Depois, o acervo foi deslocado para o espaço de outra empresa, onde também ficava o acervo do MASP. Foi então que Matarazzo se envolveu com a construção do Ibirapuera, na ocasião do IV Centenário da cidade. Em 1951, o MAM foi para a OCA. Um ano depois, mudou novamente para o Palácio das Indústrias. Perdeu mais uma vez sua sede, em 1963, quando se tentou, sem sucesso, instalá-lo na FAAP. Os diretores ficaram se reunindo em diversos locais até que, em 1968, a prefeitura cedeu o local em que o museu está até hoje”.

De acordo com seu atual curador, esse nomadismo inicial imprimiu no MAM a marca do temporário e do provisório e fez com que a entidade desenvolvesse uma “natureza de fênix”. Isso o faz acreditar que é possível desvincular o museu da posse de um edifício, chegando a um conceito de museu independente do patrimônio arquitetônico. Vale abrir um parêntese para comentar um exemplo emblemático de que a missão do museu independe de sua concretude espacial: o Museu da Solidariedade Salvador Allende. Iniciado nos anos 1970 pelo ex-presidente chileno, seu acervo foi todo construído com base na doação de artistas simpatizantes à causa socialista - o responsável pelos pedidos de doação era o crítico brasileiro Mário Pedrosa, que se encontrava exilado no Chile, naquele momento. Porém, após o assassinato de Allende e durante os anos de ditadura no Chile, as obras da rica coleção ficaram escondidas por voluntários chilenos ou espalhadas por outros museus. Não obstante, a coleção continuou recebendo doações do mundo todo. Foi só muito recentemente que o Museu da Solidariedade ganhou uma sede oficial. Sua identidade e seu acervo – parcialmente exposto na Galeria do Sesi, no início de 2008 - parecem ter resistido a agruras até mais sérias que as do MAM. Feche-se o parêntese.

Desde 2002, quando assumiu a curadoria do MAM, Chaimovich disse que vem pensando sobre como estreitar os laços entre a instituição e o parque em que ela está inserida. O próprio parque, de acordo com ele, é por si só uma criação artística, assinada por Roberto Burle Marx. A primeira possibilidade que surgiu foi a de o MAM se tornar um ecomuseu. Para isso, teria de se encaixar em cinco princípios: 1. adoção de um território; 2. identificação de recursos e celebração de determinadas características culturais; 3. conservação e interpretação de locais; 4. cooperação com outros organismos; 5. atribuição de poder à comunidade, de modo que ela se beneficie com a instalação do museu, econômica ou simbolicamente.

Ecomuseu

O Ecomuseu de Pirassununga conserva características originais da hidrelétrica que funcionava ali, abriga aquários com espécies da região, além de um acervo sobre sua gente.

"imagem retirada do site http://pirassununga.zip.net/images/museu3.jpg"

  

A idéia de transformar o MAM num ecomuseu acabou sendo descartada, justamente pelo fato de seu foco não recair sobre o patrimônio herdado – construções arquitetônicas, técnicas de produção etc. - e sim sobre a aquisição, apresentação e discussão da “modernidade artística”. Mesmo assim, têm sido buscadas alternativas que permitam ao MAM um maior diálogo com outras instâncias do parque.

Desde 2007, por exemplo, o museu organiza passeios noturnos com lanternas, em parceria com o planetário e a prefeitura do parque. Uma possibilidade futura seria investir em trabalhos que suportem as condições externas de exposição e convidar artistas a fazerem intervenções sobre o parque, para potencializar sua heterotopia - no sentido foucaultiano de possibilitar uma mudança de perspectiva sobre a ordem das coisas no tempo e no espaço. Afinal, conclui Chaimovich, “um museu nômade faz intervenções temporárias, em parceria com outros organismos e a abertura do MAM para o Parque Ibirapuera indica um passo adiante na trajetória da instituição. O museu pode criar condições de ação sobre a contemporaneidade se não se limitar à sede”. Tomara que o curador possa levar suas idéias adiante, porque as ações do MAM nesse sentido pareceram muito tímidas, quando comparadas às duas outras instituições que se apresentaram na mesma mesa.

  

As questões do público: preservação da paisagem, quebra da passividade e conquista de novos públicos

Uma pessoa da platéia, chamada Sílvia, comentou que trabalha com ecoturismo e perguntou se os membros da mesa não se preocupam com a destruição da paisagem que pode ocorrer em virtude do excesso de visitantes nos parques e jardins. Tereza Luesma respondeu com um caso concreto. Em uma das Ilhas Canárias, Lançarote, a Fundação Cesar Mandriker é um exemplo de centro cultural que acabou se tornando ativista ambiental. A ilha vulcânica terá sua paisagem destruída se receber pessoas demais. O centro cultural de arte contemporâneo de lá vem trabalhando para frear a especulação imobiliária no litoral e a abertura de novas estradas. Já Laurent Le Bon, cuja voz podia ser escutada em off, precisou que 10 milhões de pessoas visitam anualmente Versailles e que há cerca de cem vigias no parque, permanentemente, além de 50 jardineiros. Por fim, Felipe Chaimovich contou que, no Ibirapuera, existe um controle rigoroso da agenda e deslocaram-se os grandes shows da Praça da Paz para o Auditório do parque.

Na seqüência, chegou uma pergunta por escrito à mesa, indagando se a arte fora dos museus contribui para romper com a passividade do público. Le Bon respondeu primeiro, destacando que o evento Versailles OFF é concebido justamente para questionar o público, suscitar debate e estimular uma relação mais ativa e crítica com o patrimônio. Luesna acrescentou que, mais do que a surpresa, o que quebra a passividade do público é a educação, trabalhar na pedagogia, oferecer explicações. “Tudo passa pela formação, quanto mais transmitimos o sentido do artista, mais chance tem o público de atingir uma apropriação crítica”, disse. Chaimovich ponderou que colocar obras ao ar livre, em locais que tendemos a banalizar, é uma forma de transformar o cotidiano e romper com a inércia e a indiferença. Ilustrou com um projeto do qual foi curador, em Brasília. Tratava-se da reprodução, em miniatura, do plano monumental de Brasília. “Isso criou uma situação de desconforto para pessoas que transitam por ali e naturalizam essas construções, se esquecem delas”.

A terceira questão foi levantada por essa relatora, motivada por sua formação antropológica: como é a relação com a comunidade do entorno? Esses projetos de arte fora do museu atraem novos públicos? De acordo com a diretora do Centro de Arte e Natureza de Huesca, as primeiras obras foram recebidas pela comunidade com estranhamento. Depois, foram ganhando prestígio. O museu colocou traslados para os moradores das pequenas comunidades e realizou intenso trabalho educativo. Hoje, as comunidades pedem a instalação de uma escultura e não o contrário. O curador de Versailles OFF afirmou ter constatado uma grande mudança no público que vai ao castelo durante o evento. Enquanto o público regular de Versailles é internacional e turístico, o público de Versailles OFF vem de Paris ou da região de Île-de-France. “São pessoas que nunca haviam voltado a Versailles, desde a visita com a escola”. O curador do MAM também se mostrou otimista: “públicos que não são de arte têm chegado até o museu, gente que tinha vindo ao parque para se divertir, jogar bola etc.”.

À guisa de conclusão, cito a definição de arte pública do crítico Luís Camilo Osório, categoria que parece englobar as diversas formas de relação entre arte e paisagem, arte e natureza e arte e patrimônio discutidas nessa mesa redonda:

“No último século, a arte foi sentindo a necessidade de explorar outros territórios, para além do espaço reservado dos museus e galerias e, com isso, foi se disseminando no espaço político das ruas, testando sua capacidade de intervir nas questões comuns da vida. (...) A arte contemporânea é mais pública do que nunca - mesmo com o risco de deixar de ser arte...”. [4]



[1] Texto integral disponível em: http://www.espacocultural.art.br/textos/ManifestoRioNegro.pdf . Acesso em 12/12/2008.

[2] “Minha arte é um grito contra a barbárie”. Entrevista concedida a Maria Hirszman, em 22 de outubro de 2008 e disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081022/not_imp264057,0.php . Acesso em 1/12/2008.

[3] Apud OBRIST, Hans Ulrich. Arte agora ! São Paulo, Editora Alameda, 2006, p.51.

[4] Declaração dada à Revista Trópico, na ocasião da 25ª. Bienal. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/956,1.shl . Acesso em 12/12/2008.