relato

por michel sleiman


PROJETO DE RASGOS ÁRABES...


A alegação dos policiais britânicos, justificando a execução sumária do eletricista Jean Charles de Menezes no metrô de Londres, de que atiraram no brasileiro porque era “de rasgos (traços) árabes”, na expressão vernacular da imprensa espanhola, foi não só a seqüência desastrosa de um erro maior, como também – e a modo redentor para nós – o mote provocador de um projeto work in progress, cheio de perguntas, assinado pelo curador andaluz Pedro G. Romero, acolhido, organizado e produzido pela Rede de Centros de Cooperação Cultural da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento-AECID.

O projeto de rasgos árabes..., que os organizadores tencionam concluir em três anos, tem como uma de suas fases a realização de cinco seminários homônimos, dos quais um já se realizou em Buenos Aires e outros três ainda estão por acontecer em San Salvador, Santiago do Chile e a Cidade do México, além deste recentemente realizado em São Paulo, nos dias 2 a 5 de setembro passado, nas dependências da Cinemateca Brasileira. A pergunta que os organizadores fazem aos participantes de todos os seminários é a mesma: o que temos de genuíno que também não nos faça árabes? Ou dito de outro modo: o que é ser latino-americano e não ser árabe? Ou ainda: o que é ser brasileiro, ou argentino ou mexicano, a despeito de sermos parecidos com “o árabe”... a ponto de um inglês não nos ver senão como um mesmo?

Essas perguntas, elaboradas com vistas à nossa brasilidade, foram feitas aqui em São Paulo, pelo curador do de rasgos árabes..., a diretora do Centro Cultural da Espanha em São Paulo, Ana Tomé, e o coordenador do projeto no Brasil, Fernando Gerheim, junto aos demais colaboradores. Respondeu-as um grupo variado de artistas e intelectuais convidados para esta edição do seminário, tanto pelos trabalhos que assinam no campo da cultura que os vincula com o referencial árabe no âmbito americano ou mesmo oriental, como pela conexão estrita que guardam com um passado de imigrantes árabes no Brasil. Os trabalhos envolveram artífices do campo da música, das artes plásticas, escritores, poetas, sociólogos, lingüistas, historiadores e produtores culturais.

Durante as tardes desses dias na Cinemateca, foram exibidos vídeos e películas nacionais e estrangeiros com vinculações aos temas tratados à noite pelos expositores do seminário. Igualmente, fizeram-se seguir a essas exposições apresentações musicais – concerto e performance – como desdobramento em outras linguagens da problemática em debate. Desse modo, combinando vídeos, películas, documentários, reflexões, relatos, depoimentos, performances, concertos, experimentos de luz e som, intervenções plásticas que dialogam com a arquitetura, a programação proporcionou diferentes meios de aproximação ao tema de rasgos árabes..., explorando, como é de esperar, metodologias plurais que puderam escindir o foco e sortir as perspectivas dos eixos temáticos contemplados nessas jornadas — Políticas, Histórias e Mitologias.

02.09.2008. Prólogo do seminário
No prólogo, que nesse dia abriu o seminário, deu-se o relato do andaluz Joaquín Vázquez, produtor cultural da plataforma Transacciones/Fadaiat, realizado em 2004 na região de Gibraltar. O depoimento de Vásquez trouxe para o âmbito do seminário uma situação característica da Espanha (e cada vez mais do resto da Europa) que sugere alguns paralelos e pontos de contato entre o elemento árabe/arabisante do Brasil —a exemplo do que se dá com a nova comunidade muçulmana estreitada na Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai— e o lado mouro do espanhol —mais exatamente o andaluz que tem às costas o monte de Gibraltar, marco árabe medieval do domínio africano sobre a Espanha, e à frente o Marrocos de hoje, de economia fraca e principal ponto de evasão de imigrantes ilegais na Espanha; espanhol esse que compartilha, nos dois lados da costa do Mediterrâneo, um mesmo território, móvel, de idas e vindas de histórias que apagam ou reanimam os contornos e as identidades do árabe e do europeu.

Na segunda parte daquele prólogo (“somos moros, estamos negros”), em diálogo com Vázquez, Pedro G. Romero pôde se debruçar sobre os eixos temáticos do de rasgos árabes.... O curador definiu as Mitologias como a mescla de referenciais árabes que embaralha a linha da história ao projetar para o campo do mito fatos históricos e sociais de ontem e hoje. As Histórias, para ele, devem pinçar a imigração árabe a partir de meados do século XIX e suas continuidades na constituição da cultura brasileira. A pergunta de Romero se dirige ao que fazem os descendentes de árabes no Brasil: o que produzem no campo da cultura, da política, da ciência; mais do que se têm ou não características árabes. As Políticas, por fim, medem os conflitos sociais, econômicos e simbólicos das zonas de convívio e de trocas intensas, como é o caso da Tríplice Fronteira, sondando ainda os posicionamentos e formulações identitárias após os episódios do 11 de setembro, irradiadas daí para o resto do país, e vice-versa.


03.09.2008. Políticas
Silvia Montenegro e Fernando Rabossi, argentinos com pesquisa desenvolvida no Brasil, ao lado de Paulo Hilu da Rocha Pinto, da UFF, tematizaram os árabes e muçulmanos na Tríplice Fronteira, focando as construções discursivas e formações identitárias dessa que é a maior concentração de muçulmanos árabes da América Latina. O desdobramento de sua fixação nessa zona limítrofe do Sul americano, acentuando ainda mais um ponto já marcado pelo plural no tocante à nacionalidade, a língua e as condições econômicas, sociais e culturais, o contingente especial de afluentes do Oriente pós-conflitos das últimas décadas, enfim, sua percepção e seu enquadramento na mídia antes e após o marco 11 de setembro, tudo isso, segundo os expositores, tem particularizado aquele conjunto de brasileiros, descendentes majoritariamente da primeira geração de imigrantes sobretudo libaneses e palestinos.  Foi destacado o apelo da língua árabe e de um Islã tradicional e orientalizado, à diferença do Islã praticado pelos imigrantes árabes da metade do século XX e seus descendentes mais a sudeste do país, um Islã aproximado à língua nacional e de cariz menos orientalizante, portanto. Os expositores e o público se perguntaram se as diferenças identitárias que se vão gerando nessa zona já não contêm indícios de uma nova identidade em formação no Brasil, menos homogeneizadora, contrariando as leituras sociológicas tradicionais que clamam por uma compacta mestiçagem brasileira. Tratar-se-ia de um ser “árabe-brasileiro” embrionário, a exemplo das formações identitárias norte-americanas? Contudo, aquela zona também fornece indícios de aculturação, partidos das gerações mais novas, reconduzindo talvez a uma percepção cultural mais ampla. O quadro dessas identidades, pelo jeito, permanece incógnito.

04.09.2008. Histórias
O coordenador do seminário em São Paulo Fernando Gerheim e o assessor do CCE-SP Michel Sleiman particularizaram a questão identitária do “árabe” no Brasil e da sua representação no imaginário brasileiro como as questões centrais a animarem a banda brasileira do projeto de rasgos árabes... . A afirmação (lembrada por Gerheim) do cineasta brasileiro de origem berbere Karim Aïnouz de que, após o 11 de setembro, ele se tornou mais árabe do que nunca – como se alguém pudesse se tornar mais ou menos árabe a partir de determinado momento – aponta para a desconstrução do imaginário tradicional quanto ao matiz árabe na cultura brasileira, um dos objetivos do seminário. A aposição de “lupa”, no dizer de Sleiman, ou o “enquadramento”, nas palavras de Gerheim, sobre o elemento árabe da cultura brasileira, ou mesmo, a aplicação desses métodos de pesquisa onde não se espera encontrar o árabe na cultura nacional e ibero-americana, devem inaugurar, segundo eles, um novo olhar investigativo para o entendimento da brasilidade. Exposta com esses termos a introdução, seguiram-se os depoimentos dos romancistas Alberto Mussa e Milton Hatoum sobre “imigração, memória e orientalismo”.

Antepondo a autobiografia à reflexão teórica, o autor do premiado romance O enigma de Qaf localiza, como momento crucial de sua trajetória de leitor, a descoberta, em idade adulta, da literatura árabe a partir de uma viagem feita ao Líbano, Síria e Jordânia, quando pela primeira vez entra em contato com livros que tematizam a poesia dos antigos, particularmente os Poemas suspensos, obra cimeira do pré-Islã que ele viria a traduzir dez anos após intenso estudo como autodidata do idioma falado pelo pai, que falecera quando Alberto tinha apenas seis anos de idade. Ao mesmo tempo, o estudo da língua árabe e a tradução daquela poesia reinseriram Mussa no universo familiar do ramo paterno (o avô era imigrante libanês), do qual esteve espacialmente separado desde a infância. Ao lado da ambiência natural em meio às tradições tidas como tipicamente brasileiras, tais como as geradas nas escolas de samba e no candomblé, propiciados pelo convívio com o ramo familiar materno, a autopercepção do homem e do escritor só se faz integral com o reconhecimento da identidade árabe-brasileira, que ele reencontra, não a partir do imaginário ficcional de Nacib, o simpático comerciante afeito aos amores simples da cabocla Gabriela, na famigerada história de Jorge Amado, mas nos livros que se abrem ao rol dos muitos outros que –lembra o homem– na tenra infância forravam as estantes nas paredes das casas do pai e do avô. Para brasileiros com histórico de vida similar ao de Mussa, que experimentaram a mestiçagem e a desagregação, mas conquistaram os louros da reintegração, a conquista da cidadania passará também pelo reconhecimento da condição de ser árabe. Não estranha que semelhante rito de passagem possa ser expresso nos termos de uma conquista, como na frase emblemática de Mussa: “Ser árabe para mim é conquistar um imaginário, uma língua, um mito”.

O depoimento de Milton Hatoum esteve pautado pelas circunstâncias da vinda do avô ao Acre, em 1903, que nove anos depois regressaria ao Líbano, seguida mais tarde da vinda do pai um pouco antes da Segunda Guerra e seu estabelecimento no Acre e, depois, já casado com filha de libanês, definitivamente em Manaus. A reflexão do romancista manauara encontra na vinda do imigrante e na sua bem sucedida permanência no Brasil uma combinação de perdas e ganhos. Nas palavras de Hatoum, o imigrante perde o cenário de sua infância, os pares familiares e os da afetividade, o pertencimento a um coletivo identificado pela língua materna, o país e a nação, distanciando-se enfim da “origem das origens”. Mas esse mesmo imigrante, impulsionado pela força do imaginário de um Brasil imenso, de matas exuberantes e oportunidades de crescimento econômico, ganha o horizonte da nova língua, do novo espaço e das novas relações sociais, que constituem a cultura do outro, por sorte, no Brasil, uma cultura assentada sobre a base forte da mestiçagem, que tem atenuado historicamente os contornos das identidades fechadas, frente a outras culturas, mais fechadas, como a estadunidense. A inserção desse imigrante na cultura brasileira permite que cristão e muçulmano contraiam matrimônio e conservem cada qual o seu credo – algo impensado no país de origem; que, como a mangueira indiana aclimatada ao solo amazônico, os povos ibérico, semita e africano sejam transplantados no território indígena e conformem por sua vez uma “cultura transplantada”, termo que Hatoum cunha a partir da formulação do mexicano Octávio Paz quanto à “língua transplantada”, o espanhol das Américas, e o nosso português. O símbolo dessa cultura transplantada é a língua que retece o imaginário do Brasil e do Líbano nos premiadíssimos romances Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, nos quais Milton Hatoum expõe esse seu pensamento nos termos da fabulação literária. A procura pelas origens passaria, ainda, pelo encontrá-las vivas na cultura transplantada, que o escritor efetivamente localiza em episódios como o dos amores primeiros de Riobaldo em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, ou no capítulo Algaravías do romance espanhol Larva, de Julián Ríos, que Hatoum leu aos presentes, preconizando ser o elemento árabe fundador das culturas transplantas nas Américas.

As culturas e, por extensão, as identidades, para Mussa e Hatoum, por serem conceitos em constante evolução, têm mais a ver com as escolhas e afinidades do que com as origens. Abertas ao outro, as identidades compõem a cultura por inclusão de sua pluralidade. E não se observando diferenciação por origem nas identidades brasileiras, fica difícil considerar o elemento árabe como um elemento exógeno. As origens, ao que parece, não podem definir o ser, porque são marcadas pela pluralidade de elementos, a exemplo do que para Hatoum mantém ligados Cervantes, Goethe e Edward Said com Daniel Barenboim, nos quais o árabe e judeu são o anverso do mesmo selo Ocidente, ponto de vista diferente esse de certa tendência mundial que hoje condiciona a variação nas feições à incompatibilidade das mesmas, como as ideologias de cunho fascista de um Huntington. A literatura, enquanto expressão privilegiada da língua transplantada, procura assentar seus pilares no conhecimento de si e do outro, apostando naquilo que conflui para uma cultura variada e ao mesmo tempo comum a todos.

05.09.2008. Mitologias
A conferência do historiador Rogério de Oliveira Ribas, da Universidade Federal Fluminense, conduziu a reflexão para os anos idos da primeira metade do século XIX, no Brasil Imperial e escravocrata. Partindo de documentos que acusam preocupação da classe senhorial desse período com as freqüentes insurreições de escravos no Rio de Janeiro, procedentes sobretudo da Bahia, Ribas considerou o elemento muçulmano por trás de revoltas como as dos Malês, do Quilombo de Preto Cosme, de Manuel Congo e a de Vassouras, conhecida como a revolta dos Tates-Corongos. Tomada em perspectiva, essa tentativa de insurreição geral dos escravos do município fluminense de Vassouras, ocorrida em 1847, revela a importância do elemento negro muçulmano brasileiro na organização e chefia dos escravos insurrectos. Por outro lado, o peso de tal elemento pode ser medido na sua presença na Umbanda, tida à época pela  classe senhorial como uma atividade mística que seria uma espécie de “maçonaria negra”. Ribas aproximou os chefes desses insurrectos, os Tates e os Tates-Corongos, aos Tatas de Angola, entidades da Cabula e da Macumba. Uma série de indícios islâmicos compõem as características do sincretismo ritual dos credos afro-brasileiros, conferindo-lhes um tipo de islamismo “sui generis, deturpado por aluviões fetichistas”, nas palavras do lembrado historiador Arthur Ramos, autor de O negro brasileiro, obra de 1935. Àquele Islã africano, sincrético na sua origem, viria a somar-se o sincretismo brasileiro, de extração cristã. Daí os indícios: muçulmi, muçulumi, alufás; abadá (camisolão branco), alá (grande pano branco litúrgico), Oxalá (divindade branca); festas como Águas de Oxalá, canções em louvor de Oxalá, como “Nós somos filhos de alamim, alamim finfim alá”, que na tradução de Ribas e João Baptista Vargens equivale a “Nós somos filhos de Deus, amém, de Deus amem, de Deus”; amuletos – tiá na Bahia; escapulário na tradição cristã; nôminas ou escritos de mouros no Marrocos – levados ao pescoço pelos insurrectos; a “masbaha”, colar de 33 contas e as respectivas indicações de rezas islâmicas; e, finalmente o culto do negro Santo Antônio guerreiro, de Cafijeró, possivelmente inserido pelos jesuítas, que equivale a São Jorge e a Ogum, e seu o canto arabizado ainda hoje entoado na Umbanda: “Ogum diz salá salam muçalim muçalá” que quererá dizer “Ogum diz ora ora no oratório no oratório”, ou seja, nos “macaxalis”, que, na falta das proibidas mesquitas, eram os quartos de oração dos negros muçulmanos no Brasil de Oitocentos. Um último testemunho traz Ribas, demonstrando a diáspora do negro muçulmano já no Brasil do século XX, é certo samba de Anisseto do Império, fundador da Escola de Samba Império Serrano, cuja letra o historiador lembrou aos presentes. Coisas “de rasgos árabes...”, no dizer de Ribas, que vale a pena lembrar.

O seminário só podia terminar na confluência do “mouro”, do “português” e dos atuais árabe libanês e nordestino brasileiro no espetáculo multicultural A Moura Encantada, dirigido por Anna Maria Kieffer, que combinou harmoniosa e genialmente o canto português medieval, o canto andalusino, a música libanesa e o repente nordestino, em polifonia e uníssono.