Conferência 1

Relato da conferência “Viver entre dessemelhantes”, proferida por Maria Rita Kehl, em 09 de outubro de 2006

Ver Arte juntos (nas cidades)

“ O inferno é os outros.” Jean-Paul Sartre
“O inferno é o meu Máximo.” Clarice Lispector

 




Participando do seminário Trocas, Maria Rita Kehl entrou no tema Viver juntos na cidade com uma música de Adoniran Barbosa... Entre o “ esteja na favela” e “é uma ordem superior”, o tom do debate está apresentado ao público com sutileza, poesia e melodia... Se Maria Rita Kehl focalizou a sua apresentação sobre as questões relativas ao “viver juntos nas cidades”, ela não deixou de relacionar a sua palestra com o universo das artes, avisando, logo no início da sua fala que, para ela, “não seria possível viver juntos (nas cidade ou alhures...) sem a Arte e ilustrando as suas falas com obras poéticas, visuais e sonoras.


É justamente a partir dessa afirmação que pretendo acompanhar as idéias de Maria Rita Kehl, para discutir a questão do “ver arte juntos” e discutir a relação com o outro, dentro dessa cidade, dentro da cidade de São Paulo: a Bienal.


Para Maria Rita Kehl, o protótipo ou modelo do “viver juntos” não é a família mas sim viver junto ao público. Continuando nesse sentido, posso me arriscar a dizer que para ver arte juntos, o modelo também não é o da familiarização com a arte ou o fazer parte de uma família artística, mas sim a questão do público das obras: quem vai ver, entender e como? A questão da recepção da obra de arte está em jogo neste seminário, tanto quanto na curadoria geral desta Bienal.


O que seria “Ver arte juntos”?  Em um primeiro momento, lembro-me da abertura da Bienal, rito social de passagem (pelas obras), momento de recepção coletiva, nos dois sentidos da palavra. Aquele dia, eu também estava lá, curioso, atento, excitado. Queria ver as obras, obviamente, ainda mais sabendo que desconhecia a maior parte dos artistas... E queria também ver o outro vendo arte, pois estou trabalhando atualmente sobre a relação entre Antropologia e Arte contemporânea (ver artigo anterior).

Aquela dia da abertura, queria saber o que os outros achavam, sentiam, olhavam de novo... mas, como imerso dentro de uma grande cidade, fiquei meio perdido e tal vez os outros também estivessem perdidos... Os olhares de antenas nervosas não me passavam as informações estéticas que queria... Tentei me aproximar das obras para ver se o público, o outro, relacionava-se com elas e como... Era tudo muito rápido, muito corrido... muito complicado.  Nessa “convivência com meus semelhantes” convivendo com Arte, meu reflexo de antropólogo foi o de buscar respostas: perguntar.


O que você acha dessa Bienal?  Muitos pareciam não entender a pergunta, ou melhor, respondia sem responder... “Tem de tudo.... Gostei daquilo... Ainda não vi tudo....”  Frustração do pesquisador, isolamento de amador.... Senti-me sozinho com as obras.... Desesperadamente eu procurava um olhar cúmplice, uma risada, uma brecha para discutir algo, com alguém...


Se como diz o Merleau-Ponty,“o homem é o espelho do homem”, o artista deveria ser mais espelhante ainda. Mas, naquele dia, parecia que estava no meio de uma multidão de vampiros da arte, ninguém se espelhava em ninguém, as obras ficavam sem reflexo, sem refletividade compartilhada...


Foi neste momento que resolvi me “juntar”: a primeira pessoa com quem eu me juntei para ver arte era um colecionador francês, ele andava muito rapidamente, parecia uma corrida artística... E não parava não parava um segundo, possuído pela vontade de ver tudo para não gostar de nada. Entrei nessa e, no final, perguntei para ele: e ai, o que você achou? Ele disse: muita informação, pouca arte... Fiquei perplexo, e peguei carona com uma outra pessoa, um artista, desta vez.... O ritmo era bem diferente, era lento, atento e introvertido. Acompanhei-o durante uma hora, sem palavra, sentia-me mais sozinho ainda... Perguntei a ele: você não quer discutir as obras comigo ? Ele respondeu: ainda não, não estou pronto para isso  e é muito pessoal....


Talvez seja mais fácil viver juntos na cidade do que ver arte juntos... Maria Rita Kehl, citando o Freud do “narcisismo das pequenas diferenças” explica que quando meu semelhante é muito próximo de mim, não quero me identificar com ele. Talvez tenha sido isso que aconteceu naquele dia, ninguém queria ver arte juntos, ninguém queria me identificar como co-crítico da arte e ninguém queria ser identificado. Era o anonimato ético-estético, sem gozo lacaniano, sem troca.


Procurando dialogar com alguém sobre o assunto busquei na Folha de São Paulo*  algum ponto de vista sobre essa Bienal.  Para a jornalista Juliana Monachesi, “ Como viver junto elege uma vertente da produção contemporânea - a das práticas colaborativas, arte engajada política e socialmente e, por decorrência, arte documental - e busca dar consistência teórica a essa produção ao apresentá-la, em massa, como uma tendência forte da cultura de hoje.”  Identifiquei-me, concordei e entendi que talvez fosse por isso que ficava difícil ver essa Bienal juntos...   Quando Juliana Monachesi discute a “monotonia que não está apenas na montagem da exposição mas também na escolha dos curadores de privilegiar a postura ética do artista em detrimento da experiência estética que as obras poderiam gerar...”, ela me ajuda a entender o que vivi no dia da abertura da Bienal, o que observei nas minhas outras visitas à exposição: é mais fácil ver arte juntos “nos momentos em que real e ficcional se confundem.”

 

Voltei a assistir a palestra da Maria Rita Kehl, e encontrei muitas respostas para minha angústia de ver arte juntos. Considerando o espaço da Bienal como uma cidade das artes, relacionei o discurso de MariaRita Kehl sobre o homem comum e “os que sobraram” à minha preocupação do ver arte juntos.  Com um existencialismo sensível, rico e aberto, e com uma grande faculdade de reflexão e de relativização, Maria Rita Kehl convida o homem comum, nós, a pensar o viver junto para tentar viver melhor na cidade e, com isso, ajudou-me a pensar sobre o Como ver Arte junto, tema sobre o qual, com certeza, Maria Rita Kehl teria muito para dizer...


(por Stéphane Malysse)

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Trocas

27ª Bienal - Como Viver Juntos

 

* Folha de São Paulo, 2 de dezembro de 2006