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Robert Wilson

Vertices/Vetores: diálogos

(Chez) Bob Wilson

Bob Wilson Gaga

Gaga Portraits| Living Rooms, 2014

“(Corpo e Sujeito) Emprestar seu corpo à obra, dar à obra um corpo ou ainda fazer do corpo uma obra – essas expressões não dizem tudo e mostram o jogo mesmo entre corpo e arte, entre corpo e sujeito. Algo se subtrai e nos atinge na presença maciça de um corpo oferecido ao olhar. Nesse jogo, refletir sobre a performance é construir uma reflexão sobre a própria noção de sujeito hoje. Em outras palavras, a performance põe em questão o sujeito e a arte, talvez seu reduto mais próprio”

(RIVERA, 2013, p. 20).

 

No início de fevereiro de 2014, logo ao chegar à Residência em Paris, visitei as exposições Gaga Portraits e Living Room, ambas de Robert Wilson, no Museu do Louvre. Alguns aspectos foram muito marcantes nessa experiência: a maneira como o artista lida com o espaço do museu dialogando com sua coleção, a sutileza com que associa e transita entre áreas e linguagens complementares, o modo como lida com a luz no espaço cênico (que aqui é refletida em certa medida para dentro do espaço expositivo), ou ainda, a naturalidade com que traz para dentro de sua obra referências que transitam entre a história da arte e do cinema.

A visita foi feita por um pequeno grupo de artistas da Cité des Arts, num dia em que o museu estava fechado, e foi conduzida por Martin Kiefer, responsável pelo departamento de exposições. Ele proporcionou uma aproximação bastante peculiar a esse trabalho, passando não apenas pelas duas principais salas que ocupa, mas também por outros espaços do Museu onde partes do trabalho de Robert Wilson se espalham e se misturam ao acervo exposto.

A visita foi marcada tanto pelo silêncio improvável que tomava conta das grandes salas como por conversas que apresentaram intenções do artista e outras “histórias de bastidores” que não eram necessariamente tão evidentes na exposição, mas que acrescentaram informações complementares significativas às obras.

O artista, mais conhecido pela direção de óperas e peças teatrais, foi convidado a desenvolver um trabalho que dialogasse com o acervo histórico abrigado pelo museu, dentro de uma das propostas articuladas pelo Louvre que abre espaço para incorporar a arte contemporânea a seu acervo. Vale dizer que, a partir de 2001, sob a direção de Henry Loyrette, o Louvre passou a investir em três diferentes frentes voltadas à difusão da arte contemporânea: encomendas de obras permanentes, como é o caso de trabalhos de Anselm Kiefer, François Morellet e Cy Twombly (que faleceu antes de concluir sua pintura no teto da Salle des Bronzes); exposições de artistas no ciclo Contrepoints, que já exibiu obras de Michelangelo Pistoletto, Jan Fabre e Michal Rovner, entre outros; e, por fim, o projeto Le Grand Invité, que elege a cada ano uma figura notável da área cultural para coordenar um ciclo de palestras, conferências, filmes, dança, música, teatro ou, ainda, uma exposição com duração de três meses. Antes de Robert Wilson, esse projeto recebeu Umberto Eco, Pierre Boulez, Toni Morrison, Patrice Chéreau e outros. As três ações estão sendo interrompidas pela nova diretoria do museu.

Uma parte da exposição, intitulada Living Rooms, é uma ocupação da Salle de la Chapelle (espaço central no museu, antiga capela do palácio, que estava desocupado), onde o artista reuniu os mais diversos artefatos que integram sua coleção. Formada por presentes, objetos coletados e aquisições que vão de peças anônimas encontradas em lugares sem importância (como ele mesmo define) à mistura de objetos garimpados em diferentes culturas, ou a uma grande coleção de fotografias de artistas reconhecidos no cenário contemporâneo, ou a objetos de uso pessoal de alguns bailarinos e atores, como sapatilhas de Sylvie Guillen e Merce Cunningham ou, ainda, a objetos cênicos elaborados por Wilson e utilizados em suas próprias peças, com os quais faz questão de lidar no mesmo tom de igualdade, sem nomeá-los, sem destacá-los, sem diferenciá-los.

O “relicário” de Robert Wilson pretende convidar o público a visitar seu espaço de trabalho como um fragmento de sua própria casa, propondo uma cenografia que reconstrói seu ambiente cotidiano e enseja a matéria-prima de sua produção.

A outra parte da exposição reforça sobretudo seu forte interesse pela história da arte, que pode ser notado em outros de seus trabalhos. Robert Wilson realizou uma intervenção no acervo do Louvre destacando três obras de grandes mestres da pintura: A morte de Marat (1806), de Jacques-Louis David (1748-1825); Retrato da senhorita Caroline Rivière (1806), de Jean-Auguste-Dominique Ingres (1793-1807); e A cabeça de São João Batista (1507), de Andrea Solari (1460-1524). Aqui, ele referencia também um quarto retrato, em fotografia, que não está na coleção do Louvre, inspirado na tradição shibari (prática sexual japonesa de amarrar corpos com cordas). As pinturas – e a imagem Flying, derivada do shibari – são reinterpretadas em uma série de vídeos realizados com retratos de artistas famosos. Bob Wilson vem realizando e exibindo essa série desde 2005, definida pelo artista como vídeo-retratos. No Louvre, ele estabeleceu uma parceria com a pop star Lady Gaga, construindo a exposição Gaga Portraits.

Com ele como diretor e ela como performer, esse conjunto de vídeo-retratos marca a parceria entre os dois artistas, que reconstroem cenas de pinturas dos grandes mestres citados e dialogam com a coleção do museu. Bob Wilson, que já havia trabalhado com vídeo na década de 1960, tem resgatado nos últimos dez anos a potência dessa linguagem, agora trabalhada em alta definição para reforçar o hiperrealismo que pretende trazer.

O que vemos é a aparência de um corpo que mimetiza cada obra escolhida, mas também constatamos a manipulação a que tal corpo é submetido para que se aproxime ou reproduza o referencial escolhido. Esse corpo, agora condicionado, ocupa um novo lugar no espaço do museu.

Na posição de espectadores, somos levados a reproduzir a tensão que vemos na obra. Sabemos que se trata de uma tela virtual e não mais da superfície de uma pintura, mas sua aparente imobilidade convida a “olhar mais uma vez” antes de avançar pelo espaço. Somos confundidos e verificamos se o que vemos está mesmo parado na tela, pois temos a impressão de que algo se moveu. Sigo adiante, pois tenho a impressão de que tudo já foi visto, ou permaneço diante da obra? Por tratar-se de uma superfície digital, tal iminência nos coloca em estado de alerta, na condição de observadores de uma cena que pode ser modificada a qualquer momento. Entre o estático e o esboço de um movimento sutil, por vezes, o espectador é levado para dentro do quadro, nosso corpo se move pelo espaço diante dessas imagens, e somos persuadidos ou seduzidos por essas figuras.

Fazemos parte dessa relação em espiral na qual testemunhamos que alguém foi posto diante do artista e assim posto diante de sua câmera, na mesma condição de observação em que nos encontramos agora. Sua obra, seus personagens e seus olhares exigem tempo para revelar a história que contam, e emergem sobretudo dos movimentos quase imperceptíveis, como o das pálpebras, de lágrimas ou simplesmente da respiração no quadro.

Os personagens que Lady Gaga assume constituem uma espécie de metamorfose que a encaixa dentro de uma moldura e a torna quadro. O figurino cuidadosamente elaborado e a postura inquietantemente artificial são dirigidos pelo artista e colocam em evidência a força da parceria com a performer que, à primeira vista, assemelha-se a um retrato como conhecemos das pinturas do século XVI. O vídeo-retrato se constrói numa lentidão perturbadora que traz a personagem em uma postura aparentemente desconfortável, exigindo-lhe permanecer neutra, quase imóvel, por longo tempo. Ao ralentar e repetir um gesto singelo, a relação de contemplação que se estabelece diante da cena também se dilata.

A imprevisibilidade da obra, num primeiro momento, permite ocupar tal estado de atenção diante daquilo que nos é mostrado, o que garante a entrada do espectador na cena e sua forte participação como um espectador ativo diante da obra. Esse campo de força criado na tensão entre o espectador e a obra parece transcender os limites topológicos desse espaço e, assim, tanto o artista como o espectador parecem descobrir juntos que a performance mais essencial se constrói no olhar, isto é, na relação entre o público e a obra. Esse olhar é também o da obra, que se revela penetrante e não se encerra no limite da superfície.

As propostas de Robert Wilson não colocam apenas a questão do hibridismo entre as linguagens que utiliza, isso já não é mais questão a resolver, mas atraem pelo limite em que operam, oscilando entre o quadro num registro reconhecível da pintura barroca e o movimento leve proporcionado pelo vídeo. Aqui, seu trabalho articula a pintura e a fotografia, o que não só define a aparência como também sugere uma duração para a obra. Ainda que a opção do artista seja apresentá-las em loop, ao observarmos suas imagens durante algum tempo, percebemos que são cíclicas, o que confunde sua duração e não determina início ou fim para si mesma.

Apesar de certa exuberância, Robert Wilson conserva uma estrutura minimalista em sua obra, sem construir uma hierarquia entre o objeto-obra e a figura retratada. Na sua aproximação com a pintura, não parece se reduzir ao objeto de contemplação carregado de seu passado histórico enquanto quadro. O que se afirma como vídeo atesta tanto a presença da personagem diante do artista quanto sua presença diante de nós. Em seus vídeo-retratos, alterna a presença e a ausência que este corpo diante de nós nos faz refletir, colocadas sob um grande silêncio no qual nos resta contemplar.