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PATRIMÔNIO: PARA QUEM E PARA QUÊ?

Por Diogo de Moraes – Relato crítico 7º Encontro Paulista de Museus |24.06.2015 | 16h30 - 18h | Palácio dos Bandeirantes | Painel Territórios e públicos: o desafio dos museus |com Yara Mattos, Maria Tereza Duarte Paes e mediação de Camilo de Melo Vasconcellos

Relato Crítico por Diogo de Moraes

Coordenadoria dos relatos críticos: Beto Shwafaty

Introdução

O 7º Encontro Paulista de Museus teve sua discussão norteada pela noção de comunidade. Sua pauta foi concebida com base em palavras-chave moduladas no plural: museus, cidades, territórios e públicos. As instituições museológicas foram abordadas, portanto, pelo viés dos seus entrelaçamentos com diferentes comunidades, sobretudo aquelas que integram os contextos onde esses equipamentos estão inseridos.

O painel Territórios e públicos: o desafio dos museus, objeto deste relato, foi composto por duas exposições. A primeira ficou a cargo da museóloga Yara Mattos, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, no Departamento de Museologia. Atualmente, coordena o Ecomuseu da Serra de Ouro Preto, uma iniciativa vinculada ao programa de extensão da referida universidade. A apresentação de Mattos priorizou aspectos relacionados a essa experiência, que visa desencadear um processo museológico comunitário nos bairros circunvizinhos às ruínas do Morro da Queimada, antigo arraial minerador do século XVIII, situado fora do perímetro urbano de Ouro Preto (MG).

A fala subsequente foi da geógrafa Maria Tereza Duarte Paes, que é professora da Universidade Estadual de Campinas, no Departamento de Geografia, e atua principalmente nas áreas de pesquisa sobre patrimônio cultural, turismo e meio ambiente urbano. Paes dedicou sua exposição à análise das contradições inerentes aos processos de patrimonialização de sítios urbanos e conjuntos arquitetônicos. A mediação do painel esteve sob a responsabilidade de Camilo de Melo Vasconcellos, professor da área de Museologia no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

 

[Primeira parte]

O relato optará por inverter a ordem das exposições, tendo em vista que a discussão proposta por Paes priorizou uma dimensão mais teórica, conferindo importante substrato conceitual para pensarmos o estudo de caso apresentado por Mattos. Embora as pesquisadoras falem de lugares discursivos distintos - geografia e museologia, respectivamente - será possível notar uma série de convergências e reciprocidades entre os recortes por elas estabelecidos no tocante ao patrimônio cultural.

Paes subdividiu sua exposição em três eixos distintos e complementares: 1) patrimônio cultural enquanto conservação institucionalizada e enraizada no espaço, 2) a produção de sentido histórico mediante a preservação de conjuntos arquitetônicos unificados, com ênfase na constituição da identidade nacional brasileira e 3) as contradições da refuncionalização turística dos centros históricos e a patrimonialização contemporânea do território.

 

Patrimônio enraizado no espaço

Destacando o fato de não ser uma museóloga e buscando situar a sua entrada num evento dedicado ao debate acerca das práticas museológicas, Paes arrolou categorias trabalhadas na geografia que, do seu ponto de vista, teriam o potencial de agregar novas camadas ao pensamento patrimonial, com especial atenção aos aspectos ligados ao território. Nesse sentido, mencionou as lógicas de pesquisa, análise e interpretação do planejamento, normatização e uso do território, desenvolvidas pela geografia, bem como a valorização e o consumo de paisagens, atrelados aos processos de preservação e/ou invenção de memória cultural em determinados contextos.

Observação: Deste ponto em diante as asserções de Paes aparecerão mescladas aos acréscimos de referências e às formulações do relator, dando origem a um texto em colaboração.

O patrimônio cultural se refere a um enraizamento da memória, a partir de uma ancoragem espacial. Mesmo o patrimônio imaterial, intangível, possui um lugar, um território específico, uma espacialidade constituída por um sistema de objetos que materializam e dão corpo ao seu universo simbólico. Um exemplo eloquente é o compêndio cartográfico Atlas Ambulante, organizado pela dupla de arquitetos-urbanistas Renata Marquez e Wellington Cançado. Trata-se de uma publicação que reflete a experiência da cidade de Belo Horizonte do ponto de vista de seis trabalhadores ambulantes: Antônio Lamas (vendedor de biju), Osmar Fernandes (amolador de facas), Robson de Souza (vendedor de pirulitos), Jefferson Batista (vendedor de algodão doce) e Agnaldo e Marlene Figueiredo (empalhadores e restauradores de cadeiras). Articulando gêneros representacionais como o retrato e a cartografia, o Atlas apresenta um mapeamento espacial atravessado por subjetividades e modos de fazer traduzidos por conhecimentos, práticas e instrumentos altamente especializados, não obstante a sua operação em bases informais.

A geografia, por sua vez, entra tardiamente no debate sobre o patrimônio cultural e sua engrenagem institucional (há apenas dez anos), ao passo que essa área já vinha sendo amplamente estudada pela história, arqueologia, museologia, arquitetura e urbanismo. A geografia, no entanto, traz novas contribuições para o campo patrimonial, ao propor outro viés conceitual e conjuntos de categorias inéditas para a reflexão em torno das práticas de patrimonialização dos bens entendidos como culturais e históricos. Dentre as contribuições, estaria o fato da geografia propiciar leituras do patrimônio vinculadas ao uso e pertencimento ao território, a partir de análises que perscrutam os influxos decisivos na conformação espacial e discursiva das diferentes localidades.

Neste sentido, esta disciplina vai ponderar sobre como os processos de patrimonialização e tombamento, distante de qualquer neutralidade, são legitimados não apenas por critérios técnicos, mas também por iniciativas políticas e econômicas. Além delas, as dinâmicas sociais das trocas simbólicas desempenham um importante papel para tal reconhecimento, ainda que em muitos casos elas sejam relegadas a um segundo plano. Como reflexo da agenda neoliberal, os imperativos econômicos passam a adquirir proeminência em tais decisões, se apropriando e, não raro, instrumentalizando a valorização dos bens culturais chancelados como patrimônio. É importante salientar que, quando se trata de patrimônio cultural, está em jogo necessariamente uma série de processos de institucionalização condizentes à seleção de determinados bens que devem ser preservados, em detrimento de outros, processo que ocorre a partir de uma disputa por interesses políticos, econômicos e ideológicos.

Para tratar das atuais operações de patrimonialização, podemos nos apoiar nas reflexões de Françoise Choay. Segundo a historiadora, tais processos passam por três diferentes tipos de expansão na contemporaneidade: a) do seu conteúdo: dos exemplares materiais amplia-se o escopo para os bens imateriais e naturais, incluindo suas variações privadas e públicas, sagradas e profanas; b) de sua dimensão cronológica: não se patrimonializa apenas o que é antigo, mas também aquilo que adquire valor e significado no passado próximo e no presente; c) de sua extensão espacial: do objeto, da peça de museu, do edifício, passa-se a considerar a patrimonialização de cidades inteiras, a ponto de algumas cidades se tornarem patrimônios da humanidade.

Nos países do Atlântico Norte isto vai ocorrer a partir dos anos 1970 e 80, em concomitância a rupturas de ordem econômica, com a passagem do fordismo à acumulação flexível, que vai desaguar no neoliberalismo; e também cultural, com a incorporação de elementos arquitetônicos, artesanais, artísticos, ambientais e imateriais nas políticas públicas e nas iniciativas privadas, não mais como amenidades, mas como partes de um sistema econômico complexo. Esta dinâmica marca uma clivagem da perspectiva modernista, calcada na noção de unidade, para uma lógica pós-moderna de fragmentação das identidades e dos territórios.

 

Patrimonialização e identidade brasileira

As iniciativas inaugurais de patrimonialização no Brasil vão se dar nas primeiras décadas do século XX, quando tem início o processo de valorização de determinados centros históricos no país. A partir de então, estruturam-se políticas públicas na área do patrimônio. Tal valorização esteve associada a um projeto de constituição da identidade nacional. É ela que vai sustentar a produção de ideias, teorias e ideologias espaciais que, embasando as políticas públicas, passam a encampar (e produzir) símbolos de um projeto nacionalista constituído em programa de estado nos anos 1930 e 40, sob a Ditadura Varguista. Neste momento, toma-se como símbolo autenticamente nacional a arquitetura barroca colonial e suas paisagens, tendo a cidade de Ouro Preto como ponta de lança desse movimento.

Com alguma ironia, tais conjuntos acabariam se consolidando como as nossas “cidades antigas”. A escolha por tal matriz arquitetônica mostra-se, no entanto, contraditória ao considerarmos que aquele que vai representar a identidade da autonomia nacional, no contexto do Estado Novo, é justamente o patrimônio colonial.

Órgão do governo federal, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) surge no exato momento do processo de patrimonialização de Ouro Preto, envolvendo uma série de polêmicas, como a imposição de um estilo que veio a ser chamado pela população local de “estilo patrimônio”.

Nesta operação, dois processos encontram-se intimamente ligados: primeiro, a valorização do patrimônio em si e, segundo, a configuração do território a partir de tal valoração. Podemos depreender, portanto, que as iniciativas de patrimonialização e as decisões relativas ao planejamento e construção territorial formam as duas faces da mesma moeda. Por isso, devemos nos dedicar a problematizações acerca daquilo que se convencionou merecedor de preservação, de seus por quês, visto que na mesma indagação encontra-se implícita a sua sentença complementar: o que pode ser esquecido. O modo de proceder dessa crítica se daria pela investigação dos usos e valores que os bens culturais têm no presente para os diferentes grupos sociais.

Ao se aproximar do pensamento do filósofo Henri-Pierre Jeudy é possível compreender que, embora a patrimonialização de expressões culturais marcantes do passado possa nos oferecer o sentido de continuidade da história, é no presente que se tece, incessantemente, a trama da vida. Objetos, ações e sentidos da realidade socioespacial são os elementos que conformam essa rede.

Seria esse o ponto de inserção da geografia no debate sobre o patrimônio, partindo de uma ênfase nos aspectos do presente. O resgate da memória é importante para entender os sentidos atribuídos, os códigos, as coisas, os objetos, mas o que vai determinar a força, o uso e a vida (ou a morte) desses bens culturais é o uso e o valor que eles têm no presente. Logo, é importante identificar qual valor e função a sociedade confere aos patrimônios no presente.

Afinal, onde estaria o valor da memória que se quer preservar? Na estética? Nos materiais e técnicas? Na história social que lhe deu uso e sentido? Ou seriam os sujeitos e valores do presente os responsáveis por eleger determinadas formas como sendo representativas do passado?

Há, aqui, o risco de se privilegiar determinados aspectos, ao mesmo tempo em que se descuida de tantos outros, sobretudo, como no caso brasileiro, daqueles que dizem respeito às necessidades e dinâmicas das comunidades locais (dos sítios patrimonializados) vividas no presente.  A cidade de Ouro Preto, quando observado o seu processo de patrimonialização na primeira metade do século XX, fornece uma fotografia emblemática de tal contradição. Os valores estéticos e históricos, enquanto se prestavam ao programa de construção da identidade nacional, destituíram o valor social da dinâmica cotidiana da cidade e seus arrabaldes. Parte dessa contradição estaria no fato de que a valoração estética e histórica foi atribuída de fora (dos sítios patrimonializados), pelo Estado e pelos intelectuais, mediante a participação destes últimos nos conselhos deliberativos dos órgãos estatais de preservação, como o IPHAN, à época sob o comando de Lúcio Costa.

As iconografias aí produzidas acabaram por legitimar determinada configuração espacial e um corte histórico específico. Atravessemos, então, tais construções simbólicas com indagações do tipo: quais são os pactos narrativos por trás da preservação e da produção de territórios em seu sentido memorialístico? Quais discursos estão sendo aí produzidos e difundidos? Quais cenários são mais eficazes em tais empreitadas? No mínimo, perguntas como essas têm a capacidade de revelar que para cada narrativa patrimonial se elege (ou se anula) um conjunto de bens culturais, fomentando a permanência temporal e espacial de alguns e o desaparecimento de muitos outros. Refletir teoricamente sobre tais questões auxiliaria no exercício de discernimento das referências e ferramentas epistemológicas utilizadas nos programas de patrimonialização, bem como das matrizes culturais e valorativas aí em jogo, favorecendo a interpretação crítica da produção material e simbólica do espaço.

 

Preservação, comunidade e estado

Outro exemplo a ser observado é São Luiz do Paraitinga (SP). Nas últimas décadas, a cidade passou por três diferentes momentos. No primeiro, a valorização turística vinha sendo altamente impulsionada, de maneira desproporcional à da própria preservação do patrimônio. Consequentemente, ocorreu a destruição, pelas fortes chuvas, de parte significativa das fachadas e prédios de seu conjunto arquitetônico. Até então, a população local estivera completamente apartada do planejamento territorial e das políticas de preservação do patrimônio. Após o desastre, no entanto, a população se organizou e conseguiu empoderar-se e participar dos processos decisórios relativos à recuperação do conjunto que fora destruído. Uma de suas ações foi a defesa da reconstrução da igreja matriz de acordo com a sua configuração original, escolha que foi acatada pelos órgãos estatais de preservação. São Luiz do Paraitinga, nesse caso, oferece um importante precedente na busca pela superação das contradições entre as narrativas e cenários projetados para o consumo cultural, pela via do turismo, e as realidades vividas local e culturalmente por suas populações.

O IPHAN se fortaleceu na última década, com a multiplicação de planos, ações e intenções, assumindo importante papel na visibilidade turística dos centros históricos brasileiros, que passam a ser incorporados na economia política das cidades, ganhando novo papel. Outra referência de política pública, que também envolve o IPHAN, é o PAC Cidades Históricas (Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal destinado aos centros históricos). Esse programa é articulado conjuntamente às políticas urbanas, posicionando o patrimônio cultural como eixo indutor e estruturante de processos de renovação urbana.

Temos aqui uma questão presente em boa parte das agendas das cidades na contemporaneidade: a tentativa de sincronizar a patrimonialização (ligada à preservação e o congelamento de bens cultuais) e o planejamento urbano (atrelado a uma perspectiva de mudança nos espaços e seus fluxos). Muitos especialistas entendem que é impossível pensar essas instâncias de forma separada. Planejamento da preservação patrimonial e planejamento urbano deveriam, dessa forma, andar juntos.

Ações identificadas como revitalização, requalificação e reabilitação de centros históricos, áreas portuárias e bairros, ao trazerem consigo acepções e modelos de atuação higienistas, só acentuam as desigualdades sociais, não raro promovendo a expulsão das populações pobres para as bordas das cidades. Por outro lado, cabem os devidos cuidados para não se culpabilizar pura e simplesmente o patrimônio e o turismo. Em lugar disso, é necessário confrontar e modular tais iniciativas a partir de ponderações acerca da problemática estrutura socioeconômica brasileira, caracterizada por diferenças abissais na distribuição de recursos e nos níveis de desenvolvimento humano.

A associação do patrimônio com o turismo funciona em chave ambivalente. Ao mesmo tempo em que representa uma alternativa econômica e social para as cidades, revela as desigualdades socioeconômicas e socioterritoriais, não raro deflagrando operações de limpeza social. É o geógrafo Milton Santos quem formula essa crítica, ao dizer que quando se ilumina determinadas porções territoriais antes pouco valorizadas, traz-se à tona as áreas escuras e desprivilegiadas dessas mesmas porções. As desigualdades se tornam mais patentes. É justamente o que vai ocorrer como consequência das intervenções fragmentadas empreendidas no tecido urbano atualmente.

 

Refuncionalização turística

Na lógica global os centros históricos das diferentes cidades e países são chamados a participar do processo mundial de valorização, reprodução e operacionalização turística. Eles vão marcar o urbanismo contemporâneo com formas de refuncionalização do território e de reprodução das paisagens urbanas históricas em série. O território é, deste modo, tomado como um recurso a ser patrimonializado, para adquirir valor no mercado das cidades.

Observam-se hoje paisagens muito semelhantes que vão se reproduzindo nos centros históricos, nas áreas portuárias ou nas novas áreas. Essas paisagens funcionam de forma rebatida, com o elemento local em diálogo direto com o global. É por esse motivo que as intervenções urbanísticas e arquitetônicas são, com frequência, bastante assemelhadas.

Busca-se destituir, em muitos casos, a força de resistência do lugar, na medida em que se cria uma área conectada com os influxos globais. Solapa-se, assim, a dimensão de pertencimento e as raízes que formariam um lugar de fato assentado nas dinâmicas e urgências locais. Este fenômeno vem ocorrendo mundialmente, gerando situações de gentrificação e elitização. Nos EUA e na Europa ele tem início nos anos 1980. Na América Latina ele surge a partir dos anos 1990, diretamente ligado à prática de turistificação dessas áreas, quase nunca em benefício da população local.

Agência especializada da ONU para a educação, a ciência e a cultura, a UNESCO participa ativamente dos processos de patrimonialização na contemporaneidade. O que significa que a seleção de bens mundiais conta com a anuência de 187 países, os quais salvaguardam patrimônios materiais cuja prerrogativa de legitimação e a palavra final estão com as dez principais potências mundiais. O selo de patrimonialização da UNESCO valoriza, automaticamente, os locais para a atividade turística, funcionando como uma poderosa marca para a atração de investimentos.

Este modelo de refuncionalização - mas também a busca por resistir a ele - pode ser observado em um trabalho intitulado Imaginar el Mercado San Roque, desenvolvido pelos educadores do Mediación Comunitária, programa integrante da Fundación Museos de la Ciudad, em Quito. No seu centro histórico, que é reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, está situado o Mercado San Roque, um centro comercial popular de grande porte, que reúne um significativo contingente de trabalhadores e vendedores indígenas. Além das práticas comerciais realizadas no interior e nas cercanias do mercado, é possível notar, conforme destacam os educadores do programa, que este centro comercial é também um lugar de convivência, onde se desenvolvem complexas interações sociais, culturais e econômicas. Um lugar de intercâmbio de saberes e de relações interculturais, que inclusive abriga um centro experimental de educação bilíngue, destinado aos filhos dos comerciantes do mercado, onde se fala e se ensina o espanhol e o kichwa.

Mas, a partir da década de 1990, problemáticas envolvendo o mercado passaram a ser usadas por agentes públicos e privados em uma campanha de estigmatização do centro comercial. Com isso, ele vem sendo (estrategicamente) identificado como um polo causador de insegurança e caos no centro histórico, o que vem alimentando um possível plano de deslocamento do Mercado San Roque para outro setor da cidade, afastado do centro histórico.

Teríamos, ainda, um importante instrumento de análise da refuncionalização dos sítios urbanos. Trata-se do conceito de redução narrativa. Ele se refere à lógica de seleção dos objetos culturais (representantes de determinados períodos históricos e matrizes culturais), aos quais seria atribuída a função de corporificar a memória. Enquanto marcadores territoriais e históricos, esses objetos atuariam como balizas para o planejamento dos lugares de memória que poderiam gerar atratividade e investimento.

O caso de Paraty (RJ) é emblemático neste sentido. Ao selecionar os séculos XVII e XVIII como períodos caracterizadores de sua paisagem, seu processo de patrimonialização nega outras fases que também fazem parte da vida da população e da dinâmica da cidade. Por exemplo, os séculos XIX e XX ficam praticamente esquecidos em seu perfil, sem falar nos índices materiais e imateriais do seu cotidiano. Pratica-se, portanto, a chamada redução narrativa, obliterando determinadas memórias e camadas históricas em benefício de outras. O resultado dessa redução, muitas vezes, é a tradução das cidades em parques temáticos.

Para concluir, o binômio turismo-patrimônio cultural, malgrado a série de contradições apontadas, representa um vetor possível de reestruturação dos territórios na contemporaneidade. No caso brasileiro, entretanto, mostra-se necessária a superação dos preceitos importados dos países centrais no que tange às intervenções territoriais e urbanas, visto que aqui elas têm funcionando, sobretudo, como ações higienistas.

 

[Segunda parte]

A conceituação crítica de patrimônio cultural, formulada por Paes pelo viés da geografia, funcionará como lastro epistemológico para a observação do estudo de caso apresentado por Mattos sob o título de Ouro Preto: entre a cidade, a serra, os museus, seus habitantes, seus visitantes. Dentre os diversos exemplos apontados acima por Paes e pelo relator que aqui escreve, será possível proceder a uma verticalização em um caso específico de cidade patrimonializada. Ouro Preto foi, inclusive, a primeira cidade brasileira a ser reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Mattos destacou que dedicaria suas ponderações às relações (e cisões) entre a cidade de Ouro Preto reconhecida pelo IPHAN (1933) e pela UNESCO (1981), que ela chama de “cidade protegida”, e as porções periféricas que ela nomeia como “cidade esquecida”, correspondente aos bairros externos ao perímetro urbano, localizados na Serra de Ouro Preto. Entre eles, Mattos concentrou-se no Morro da Queimada que, além das comunidades, abriga as ruínas do antigo Arraial do Pascoal, com suas edificações do século XVIII, remanescentes do ciclo do ouro.

Entre as principais referências de Mattos neste exercício de análise das “duas cidades” de Ouro Preto, estão as reflexões do historiador Ulpiano Bezerra de Meneses em torno das ferramentas conceituais de análise da cidade, que abarcam dimensões como a “cidade artefato”, “a cidade como campo de forças” e a “cidade como representação social”. Além dele, a museóloga destacou as contribuições de Milton Santos - autor também citado por Paes - acerca dos conceitos de território, espaço e lugar, os quais seriam indissociáveis das iniciativas dos atores sociais. Huges de Varine, museólogo francês dedicado às atuais discussões da nova museologia e da museologia comunitária, também foi mencionado, inclusive em virtude de consultorias que vem realizando na cidade de Ouro Preto, com a intermediação de Mattos.

 

A cidade artefato e sua representação social

Num breve retrospecto sobre Ouro Preto, Mattos chamou atenção para o seu caráter de artefato, enquanto aparelho construído em função de finalidades, dentre elas, a sistemática prática da mineração a partir do século XVIII, conhecida como ciclo do ouro, tendo sido responsável por um dos primeiros povoamentos coloniais no interior do território brasileiro, fazendo avançar os agrupamentos que até então estiveram circunscritos à faixa litorânea. Lugar de poder e conflitos, a cidade foi sendo constituída ao longo dos séculos por uma série de arraiais mineradores que ali foram se fixando.

Enquanto representação social e campo de forças, a cidade e suas dinâmicas subjazem à exuberância de seu complexo arquitetônico e paisagístico, implicando toda uma trama de vivências e relações sociais. Neste sentido, é uma cidade rica em signos e símbolos de tempos históricos cruzados. Mesmo sendo um patrimônio mundialmente conhecido e largamente visitado, Ouro Preto não se reduz, hoje, à condição de cidade presépio, como destaca Mattos. Ao contrário, é uma cidade viva, apresentando inclusive diversos problemas característicos de uma cidade contemporânea, como é o caso do trânsito abundante (e desproporcional) de veículos motorizados, o que vem provocando o abalo de suas ruas estreitas de pedra. A cidade também conta com uma universidade de porte, a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Seus principais desafios dizem respeito à garantia da qualidade de vida para os moradores, bem como das boas condições para os seus visitantes.

Durante mais de trezentos anos, a cidade foi se constituindo como um patrimônio cultural, ambiental, social e histórico. Dentre os símbolos que atravessaram o tempo, chagando até nós, estão, por exemplo: o amor romântico de Marília e Dirceu, narrado por Tomás Antônio Gonzaga, a figura inconfidente de Tiradentes, as minas de ouro de Chico Rei, com suas lendas, e as obras de Aleijadinho e do Mestre Ataíde, a Casa da Ópera/Teatro Municipal (o teatro mais antigo da América Latina), além de toda a paisagem arquitetônica.

É possível afirmar que tais emblemas culturais e históricos encontram-se contemplados e narrados pelos monumentos, museus, roteiros e sítios localizados na “cidade protegida”, na rota designada por Mattos como “caminho tronco”.  Aí nos deparamos com o Museu da Inconfidência, o Museu de Arte Sacra do Pilar, o Museu Aleijadinho, o Museu do Oratório e o Museu Guignard, entre alguns outros. Já fora do perímetro urbano da cidade estão localizados o Museu do Chá, o Museu das Reduções e o Ecomuseu da Serra de Ouro Preto, objeto principal da exposição da museóloga.

 

Ecomuseu como laboratório

O Ecomuseu da Serra de Ouro Preto configura-se como um museu laboratório ligado à UFOP, ao seu Departamento de Museologia. É atualmente coordenado por Mattos em diálogo com as comunidades e lideranças do Morro da Queimada (que abrange o Morro São Sebastião, Morro São João, Santana e Queimada), e conta com a participação direta dos alunos de graduação em museologia e também de outros cursos da universidade. Afastado do “caminho tronco” da cidade, o Ecomuseu ainda não é um museu instituído. Calcado no protagonismo comunitário, orienta-se pela relação dos moradores com os bens culturais locais, em termos materiais e imateriais. Está passando por uma série de discussões em torno do seu melhor modelo de gestão e, além disso, trabalhando com uma lógica territorial ampliada, não se fixando em nenhum prédio específico.

O Ecomuseu vem sendo trabalhado a partir de diferentes núcleos, dada a sua forma expandida de operar territorialmente. Com exceção do Morro São Sebastião, os outros núcleos ainda estão por desenvolver as suas formas de envolvimento e ancoragem. Nesta busca pela definição e institucionalização do Ecomuseu, a comunidade do Morro São Sebastião vem assumindo a dianteira no processo. Ali já funcionava inclusive o Bar Cores, Flores e Sabores, com um tipo de atuação similar ao de um centro cultural. Mattos destaca que este local, antes mesmo das iniciativas do Ecomuseu, já vinha desempenhando a função de dinamizador cultural naquela localidade. Um paralelo, talvez, seja o papel assumido por bares e botecos situados nos bairros periféricos da cidade de São Paulo, onde ocorrem saraus literários organizados por agentes das comunidades.

Com uma proposta museológica que entende acervo e coleção de modo não convencional, o Ecomuseu assume como sua plataforma o trabalho a partir de características afetivas, cognitivas e volitivas dos moradores do Morro da Queimada. O que se busca trazer à tona é a cultura viva local. Neste sentido, festas, causos, contos, memórias, lideranças comunitárias e moradores locais integram a rede de saberes, agentes e valores que o Ecomuseu busca tornar visível tanto para os que são dali como para os que vêm de fora. A título de exemplo, Mattos conta que tais comunidades vêm se redescobrindo como descendentes da cultura tropeira. O Ecomuseu, portanto, buscaria trabalhar e auxiliar essas comunidades a levantar esta e outras referências culturais que lhe são caras.

É a partir daí, desse reconhecimento dos bens culturais (materiais e imateriais) das comunidades, que a museóloga pensa as possíveis pontes (em mão dupla) entre a “cidade esquecida” e a “cidade protegida”. A grande maioria dos moradores do Morro da Queimada integra o que a museóloga chama de “não-público” dos museus situados no “caminho tronco” de Ouro Preto. Pode-se depreender, no entanto, que a prioridade estaria menos em buscar, pura e simplesmente, que os integrantes dessas comunidades se apercebam da importância de frequentar e se apropriar dos museus localizados na “cidade protegida”, e mais em construir situações de intercâmbio simbólico entre esses dois universos. Inclusive porque os moradores, não raro, narram aspectos das mesmas tradições culturais de forma diferente da que contam os museus da cidade. Eles contam, por exemplo, a história da mineração e do tropeirismo à sua maneira, diferente da narrativa histórica oficial apresentada pelos museus. Logo, buscar conexões efetivas entre tais narrativas, em lugar de apenas sobrepor uma à outra, seria uma forma de fazer do imperativo “esse público precisa se apropriar dos museus da cidade” (curiosamente reproduzido por Mattos) algo mais matizado.

 

Considerações finais

A aproximação e cotejo entre as exposições de Mattos e Paes nos possibilita, entre outras leituras, ampliar e complexificar a compreensão do que são os públicos endereçados e envolvidos no desfrute dos bens culturais elevados ao estatuto de patrimônio. Destacando dimensões como pertencimento, território, resistência e protagonismo comunitário, suas abordagens favorecem formas de análise - e também de atuação - que levam em conta os diferentes segmentos sociais implicados nos processos de patrimonialização de sítios urbanos, para além do turismo. Ou seja, devemos incorporar a tais processos dobras problematizadoras que visem assegurar às populações locais os seus direitos básicos enquanto cidadãos, e também a valorização de seus saberes, tradições e práticas culturais.