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Política da estética - Entrevista com Simon Sheikh sobre a 29a Bienal

Por Ana Leticia Fialho e Graziela Kunsch [especial para a Trópico/Em obras, 3/11/2010]
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"Os Olhos de Gutete Emerita" (1996), de Alfredo Jaar, vista da instalação na 29ª Bienal de São Paulo (2010)
Duas Águas - Cortesia Daros Latinoamerica Collection

O crítico e curador dinamarquês Simon Sheikh defende que as bienais sejam lugares de esperança, e não só do capital

O crítico de arte e curador dinamarquês Simon Sheikh (1965) esteve em São Paulo durante um mês, numa viagem de pesquisa de um grupo da The Royal Danish Academy of Fine Arts. Nesse período, ele pode visitar várias vezes a 29ª Bienal de São Paulo e examiná-la com muita atenção.

Sheikh também desenvolve atualmente uma pesquisa sobre exposições de arte e imaginários políticos na Universidade de Lund, é orientador do projeto "Former West" e curador da exposição "Vectors of the possible" (na BAK, em Utrecht). Além disso, ele é editor da série de livros "OE Critical Readers", na qual se destaca a obra "In the Place of the Public Sphere?" (2005).

A fim de conhecer as reflexões de Sheikh sobre a Bienal, Trópico o entrevistou, estruturando as questões a partir dos tópicos arte e política, criticalidade, contexto e historicização, mediação e da noção de exposições de arte como "espaços de esperança", tese defendida por ele.

Segundo o curador, para que as bienais sejam lugares de esperança, e não somente do capital, elas precisam "estar mais ancoradas em seus contextos e comunidades e menos nas estruturas de poder e interesses econômicos do mundo internacional das artes".

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Arte e política

Gostaríamos de começar ouvindo você a respeito do tema que permeia a 29ª Bienal de São Paulo e muitos dos textos que você publicou. Parece-nos que há um contraste significativo entre o "statement" dos curadores desta Bienal, segundo o qual “a dimensão utópica da arte está contida nela mesma, não está fora ou além dela” e a sua posição, de que “a arte importa, mas não é suficiente”1 ou “a arte importa ou ao menos deveria importar, e não deveria ser vista como um playground para auto-expressão ou análise”2

Simon Sheikh: Como está indicado na breve introdução do catálogo da 29ª Bienal, os curadores utilizaram uma leitura específica das ideias de Jacques Rancière sobre estética e política. A diferença entre meu ponto de vista e o deles talvez resida na interpretação de Rancière. Até que ponto Rancière quer generalizar a arte moderna e contemporânea como um tipo de política ou está pensando em práticas artísticas específicas e políticas específicas?

A idéia central de Rancière é a de que a estética deve ser entendida como a "partilha do sensível" – toda arte sendo, nesse sentido, política, por lidar com o que é visível e invisível. Parece-me que os curadores usaram essa ideia como ponto de partida para a Bienal, sugerindo assim que toda arte é política. Com essa premissa, eu estou de acordo.

Mas eles parecem ir além disso, dizendo que a arte tem uma política específica por ser visual, por lidar com o que é visual e, por isso, não se trata de conteúdo político, e sim de estética, criando, de certa forma, um universo paralelo à política. Isso indicaria uma política universalista mais do que uma política específica, com preocupações e estéticas específicas.

Mas o que seria esse universal? A arte ou o fato de a arte ser política porque lida com a partilha do sensível? Isso me parece um argumento altamente circular. Existem políticas da arte que são específicas da arte, da estética e que separam o que é conhecido como o “gênero” arte política do que é propaganda e crítica institucional.

Se voltarmos à ideia de Walter Benjamin, de que a arte tem a “tendência política correta” e que existiria então uma “tendência estética correta” (que para ele seria o modernismo e a montagem), poderíamos dizer que existe uma passagem direta de um projeto político que revoluciona a sociedade para um projeto artístico que revoluciona a estética de forma a revolucionar a sociedade.

Seria esta então uma ideia diferente da que é proposta em parte por Rancière e em parte pelos curadores ou uma diferença entre uma posição moderna e pós-moderna do que seria a relação de arte e política?

No entanto, entendo que a arte não é política, e sim um tipo de parapolítica. Interessante voltar a Rancière e a seu livro "O desentendimento: política e filosofia"3, no qual ele trata primeiramente de sua noção de política da estética. Neste livro ele descreve a filosofia como um paralelo à política, e o desacordo como um corretivo, não como um suplemento ou realização de algo.

Obviamente "Desentendimento" é menos conhecido no mundo das artes, e não por acaso, pois sua definição de arte e política é bastante limitada. A política é entendida apenas como ruptura daqueles que não têm nada demandando a sua parte, ou seja, uma igualdade radical. Isso (a política) é um momento fugidio, não um estado estável das coisas.

Tudo que é descrito normativamente como política, como as eleições parlamentares, processos legislativos etc., para Rancière não é política, é ordem policial. É importante entender a política da estética nesse sentido, pois se torna difícil desenvolver um argumento de que arte é política a menos que crie uma ruptura. Isso teria por consequência a visão de que para uma obra ser política teria que trazer uma ruptura com a representação ou ser produzida por alguém que não é representado (quase em termos de identidade política). E mesmo Rancière reconheceu que isso seria muito limitado4.

Mas, se tomarmos a sério a proposta inicial de Rancière, seria difícil para qualquer curador reivindicar ser político, poderíamos dizer então que toda forma de curadoria é parte de uma ordem existente e, portanto, de uma polícia da estética, e não de uma política da estética. E a ideia de que o fazer de uma exposição é uma forma de policiamento, de ordem policial me interessa. Porque eu não sei onde, nesse quadro dado por Rancière, podemos inserir a esfera política.

Poderíamos dizer que agora somos todos oficiais de polícia, o que não é de todo negativo, se pensarmos na origem do "Polizeiwissenschaft", nos séculos 18 e 19 na Alemanha, que tomava conta dos cidadãos, sendo parte de um regime de governabilidade (para usar um termo de Foucault).

Se pensarmos em termos de policiamento, podemos ver diferentes relações entre curadores, artistas e públicos. E essa é uma preocupação que tenho não somente em relação a esta bienal, mas bienais em geral.

Mas elas podem ser políticas no sentido de criar uma ruptura? Eu acredito que exposições podem ser políticas de outras formas, criando imaginários políticos. Qualquer trabalho, por ser estético, também é político, se você diz que o estético é político, mas uma obra faz parte de uma política específica, e não somente no sentido genérico. Ela faz parte de um imaginário político específico, seja ele consciente ou não.

Uma obra sempre articula relações políticas, para o bem ou para o mal, de uma política a outra. Então dizer que toda arte é política não nos diz muito sobre o que Walter Benjamin chamou de uma tendência política da obra, sobretudo se tentamos nos desvincular da noção de intencionalidade. A política da obra não pode ser equiparada à intenção do produtor, e sim a um modo de expressão do trabalho.

Pode-se considerar que não é a intenção, mas sim a produção da obra que é política. Talvez a obra, o seu formato, como ela se relaciona com o público, pode ser considerada política de uma forma diferente da que o produtor por trás dela a considera. O mesmo é válido para as bienais. Como elas contribuem para mostrar uma visão particular do mundo, trazer certo horizonte do possível e do impossível? Talvez esse entendimento ofereça uma visão diferente da dimensão política da arte, e por extensão, do fazer de uma exposição.

Não podemos ignorar que vivemos uma agenda neoliberal, por exemplo. Podemos ser críticos ou complacentes em relação a isso, e bienais sempre terão que ser ambas as coisas. As bienais, pelo seu próprio formato, não podem se desvincular desse tipo de política, elas constituem certa economia, política de trabalho e de consumo. Elas fazem parte desse contexto, e também de estratégias de "branding" de cidades.

Nesse sentido, como uma exposição pode trazer um novo horizonte do mundo e não somente ser parte desse contexto ou fazer uma crítica ao estado das coisas? Podem as exposições ser uma forma diferente de olhar o mundo? Isso significa olhar de forma diferente para como as exposições são feitas, espacializadas e articuladas em um determinado contexto.


Criticalidade

Pensando em bienais no contexto de "um capitalismo global em expansão e corporatização da cultura", como "manter formas de crítica, participação e resistência" em eventos do porte de uma bienal internacional?5

Sheikh: O que as bienais fazem é cristalizar conflitos que são inerentes não somente ao mundo das artes e à sua relação com um sistema político ou econômico determinado, e também os conflitos existentes na relação entre o mundo das artes e da produção artística com o campo social e político em geral. E um exemplo concreto, nesta Bienal, foi o protesto de grupos ligados aos direitos dos animais e sua crítica ao trabalho do Nuno Ramos ou a ação dos pixadores, há dois anos e neste ano, e assim por diante.

Por definição e por decreto, tais eventos atingem uma maior audiência que outros eventos de arte, e o público nem sempre aceita as regras de conduta que uma exposição estabelece para seus usuários.

Existe sempre uma situação conflitual e dialógica nessa fronteira. E a idéia de criticalidade aparece porque tais eventos chamam mais atenção e cristalizam assim todos esses conflitos. No entanto, acredito que tanto o artista quanto o curador podem conservar uma postura crítica nesse contexto.


Contexto e historicização

Se considerarmos a lista de artistas apresentados na 29ª Bienal, observamos uma presença significativa de nomes que já alcançaram reconhecimento internacional, do ponto de vista institucional e do mercado, ou seja, que circulam globalmente. Isso nos faz pensar no perigo que você aponta de bienais intercambiarem artistas participantes sem uma reflexão sobre a mudança do significado de acordo com o contexto6. Outra questão, também relacionada ao contexto, diz respeito à relação (ou falta de relação) entre a forte presença de artistas e movimentos históricos e a produção contemporânea apresentada. Como você percebe essa tensão?

Sheikh: A relação entre obras históricas e contemporâneas é sempre problemática, sobretudo quando se evita a relação temática. Pode se tornar uma questão de legado ou legitimidade, reivindicando uma filiação do contemporâneo ao histórico ou dando ao histórico uma renovada legitimidade vis-à-vis do contemporâneo, o que não é interessante para nenhum dos lados, mas talvez seja para "dealers" e colecionadores.

As duas posições são problemáticas do ponto de vista da escrita da história. Então podemos indagar sobre qual cenário as obras históricas criam para as contemporâneas atualmente. Uma bienal não é uma retrospectiva, ela faz parte do presente. E essa é uma questão que surgiu com o grupo de alunos da Academia de Arte de Copenhague que eu estava acompanhando numa visita à Bienal.

Eles perguntaram sobre o papel dos trabalhos históricos e muitos consideraram a sua presença excessiva: “As obras contemporâneas precisariam das históricas (sobretudo as conceituais) como uma forma de justificação?”. “Talvez os trabalhos devessem ter uma autonomia e não estarem à sombra da história.” Olhando para a expografia da exposição, surge a questão da forma como trabalhos históricos são apresentados e a razão pela qual eles são tão numerosos.

Eu acho que são todos trabalhos excelentes, mas, a meu ver, uma bienal não é uma retrospectiva. Ao menos espero que não seja. Então, para mim, parece haver uma superrepresentação de obras históricas, e não estou certo do que elas acrescentam ao presente, quando elas são uma legião7, além de simplesmente atestar que a história é instrutiva.

Sem dúvida é, mas somente na sua especificidade: quando este método neste tempo e lugar tem um significado neste tempo e lugar. E nesse sentido creio que há de fato um intercambiamento ("interchangeability"), especialmente porque muitas dessas obras históricas são hoje muito conhecidas, e talvez fossem mais precisas numa exposição própria, com uma trajetória específica, e uma reivindicação do presente.

Em segundo lugar, tem a questão da contextualização e localização. Por exemplo, o que significa aproximar Flávio de Carvalho e Maria Thereza Alves ou Antonio Manuel e Gustav Metzger? O que significa ter Tucumán Arde como papel de parede? Seriam tais exemplos de performance, arte conceitual ou política precursoras das formas contemporâneas? Em outras palavras, qual a relação exata entre Tucumán Arde e Joseph Kosuth ou Douglas Gordon?

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1 - “Art matters, certainly, but art is not enough”. Conclusão do texto "Representation, Contestation and Power: The Artist as Public Intellectual", publicado em "Republicart", http://www.republicart.net/disc/aap/sheikh02_en.htm.

2 - “It is our firm belief that the cultural field is a usable tool for creating political platforms and new political formations rather than a primary platform in itself; that art matters, or at least should matter and not only be a playground for self expression and/or analysis.” Idem.

3 - São Paulo: Editora 34, 1996. Original: Rancière, Jacques. "La mésentente: politique et philosophie". Galilée, 1995.

4 - Esta questão foi tratada por Rancière na entrevista concedida a Christian Höller. Ver “The disposal of democracy”, revista "Springerin", março de 2007.

5 - Fazemos referência aqui ao texto “Marks of Distinction, Vectors of Possibility. Questions for the Biennial”, publicado em "Open, Cahier on Art and the Public Domain", número especial “The Art Biennial as a Global Phenomenon. Strategies in Neo-Political Times”, NAi Publishers, SKOR, 2009, nº 16.

6 - Retomamos aqui o conceito de "interchangeability", utilizado no texto acima citado, embora a tradução por intercâmbio ou intercambialidade não nos satisfaça totalmente.

7 - “Legion” no original.