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Crítica: Bienal de São Paulo apresenta um tom político raro no Brasil

Por FABIO CYPRIANO CRÍTICO DA FOLHA de São Paulo 06/09/2014

Não parece coincidência que a 31ª Bienal de São Paulo tenha tantas obras sobre religiosidade e, em particular, sobre evangélicos, no momento em que o Brasil pode vir a ter uma presidente evangélica.

De fato, há uma temperatura jornalística na exposição, organizada por um time de curadores estrangeiros, Charles Esche, Galit Eilat, Nuria Enguita Mayo, Oren Sagiv e Pablo Lafuente, que se preocuparam em falar do contexto onde a Bienal ocorre.

Talvez por isso, a exposição tenha tantos vídeos, afinal é a mídia que mais pode se aproximar do caráter documental, embora demande tempo, o que nem todo visitante está disposto a gastar. Mas deveria.

Nesse sentido, o coração da Bienal se torna o "Video Trans Americas", um mapeamento da América Latina em vídeo, feito pelo chileno Juan Downey (1940-1993), entre 1973 e 1979.

Radicado em Nova York, em busca de suas raízes, Downey decidiu atravessar todo o continente, durante esses seis anos, registrando de grupos urbanos a povos da selva, mas sempre buscando projetar as imagens nesses locais, instaurando uma ética de troca.

PANFLETÁRIO

Esses procedimentos, do registro e da troca, de certa forma atravessam a mostra, às vezes em obras com caráter didático, às vezes até panfletário, mas que se sustentam em um tom político raro em terras brasileiras, especialmente após a 30ª Bienal, que evitou qualquer possibilidade de conflito.

Um dos trabalhos exemplares nesse sentido é "Apelo", um vídeo de Clara Ianni realizado em parceria com Débora Maria da Silva, mãe de uma vítima das ações de esquadrões da morte, em São Paulo, em 2004.

Gravado no cemitério Dom Bosco, em Perus, criado em 1971 para receber corpos das vítimas do regime militar, "Apelo" aponta que a truculência sofrida pela classe média naquele período não foi alterada na periferia nos dias atuais.

Menos contundente, mas mais complexo, a videoinstalação "Contando as Estrelas", da israelense Nurit Sharett, constrói-se por um mosaico de depoimentos dos chamados "anussim", cristão novos descendentes dos judeus que foram forçados a se converter ao catolicismo no período da Inquisição no Brasil.

Nesse trabalho, Sharett revela os traumas surgidos em decorrência da violência da Igreja Católica no período colonial, a partir de histórias atuais, novamente unindo passado e presente na mostra em São Paulo.

Contudo, é importante salientar, não se trata apenas de uma reunião de obras engajadas.

OCUPAÇÃO

A mostra faz a melhor ocupação do pavilhão da Bienal já realizada nos últimos anos, dando não só amplo espaço às obras, mas criando lugares de convivência.

Isso ocorre tanto no térreo, área aberta e mais voltada a ações propostas pelos curadores, quanto no primeiro andar, onde conjuntos de sofás estão dispostos para encontros mais íntimos.

Com isso, a organização do espaço expositivo coincide com a maneira de trabalho dos curadores na elaboração mostra, que se baseou em encontros por diversas cidade do país.

Assim, o dispositivo expositivo funciona como uma metalinguagem do processo do elaboração da Bienal.

Finalmente, para uma exposição com caráter tão politizado, muitas das obras recorrem à ironia e ao humor para tratar de temas sérios. É o caso do coletivo argentino Etcétera em parceria com León Ferrari, que pede em uma petição ao papa o fim do inferno, ou da curadoria "Deus é Bicha", organizada pelo peruano Miguel López.

"Como falar de coisas que não existem", um dos títulos dessa edição do evento, ele mesmo já é uma ironia. Afinal, poucas foram as Bienais que conseguiram de forma tão urgente e radical falar de coisas que existem.