Você está aqui: Página Inicial / Dossiês / DOSSIÊ: Cortina de fumaça - o falso moralismo. / O que representam as obras que causaram o fim da exposição Queermuseu

O que representam as obras que causaram o fim da exposição Queermuseu

por Nathan Fernandes

 

Travesti de lambada e deusa das águas, de Bia Leite, 2013 (Foto: Divulgação)

 

Em cartaz há quase um mês no Santander Cultural de Porto Alegre, a exposiçãoQueermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira foi cancelada depois de uma série de protestos na internet. O boicote foi liderado, principalmente, pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e recebeu apoio do prefeito da capital do Rio Grande do Sul, Nelson Marchezan Jr. (PSDB)

A acusação era a de que algumas das 270 obras que abordavam questões de gênero e de diversidade sexual eram ofensivas, pois faziam apologia à zoofilia, à pedofilia e blasfemavam símbolos religiosos.

A exposição, que passou pela curadoria de Gaudêncio Fidelis — curador-chefe da 10ª Bienal do Mercosul, em 2015 — trazia obras de artistas consagrados, como Volpi, Portinari, Flávio de Carvalho, Ligia Clark, Alair Gomes e contemporâneos de peso, como Adriana Varejão, artista com peças expostas no Tate Modern, de Londres, no Guggenheim, em Nova York, e na Fundação La Caixa, em Barcelona .

Em artigo da revista Cult, a ex-secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura Ivana Bentes, que também foi diretora da Escola de Comunicação da UFRJ, condenou a proibição:

"A patrulha fundamentalista e de 'ódioartivismo' repete o Partido Nazista da Alemanha, nos anos 1930, que passou a perseguir o que considerava uma “arte degenerada”, ligada aos movimentos vanguardistas modernos. Picasso, Matisse, Mondrian, glórias da arte mundial, foram considerados 'degenerados' e execrados em exposições pelos nazis. Repete-se no Brasil de 2017 o ridículo histórico."

+ Leia também: Nazismo de direita ou de esquerda? A 'pós-verdade' e o discurso de ódio

Afinal, é possível que artistas de peso se dediquem a ofender espectadores sensíveis por diversão? Ou existe um possível sentido nas obras que foram consideradas ofensivas?

‘Cena de interior II’, de Adriana Varejão, 1994.  (Foto: Divulgação)

 

Sobre uma das pinturas mais atacadas, Cena de Interior II — que foi usada como exemplo da exposição que "gastou 800 mil reais de dinheiro público (via Lei Rouanet) para crianças verem pedofilia e zoofilia" — a autora Adriana Varejão alega não se tratar de uma obra infantil.

"A pintura é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas (como as Chungas, clássicas imagens eróticas da arte popular japonesa) e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas práticas", explicou ela ao jornal El País, reforçando a ideia de jogar luz sobre coisas que não são discutidas.

Outras peças julgadas como "amorais" foram Travesti da Lambada e Deusa das Águas e Adriano Bafônica e Luiz França de She-há, da série Criança Viada (imagem no topo), que trazem ilustrações de crianças que fogem do padrão heterossexual. 

A coleção — já exposta no “XIII Seminário LGBT”, na Câmara dos Deputados, em Brasília, em 2016 — é de autoria da artista Bia Leite, inspirada no tumblr criado pelo jornalista Iran Giusti. 

Leite afirma ser contra a pedofilia e o abuso psisológico de crianças. Em entrevista ao portal UOL, a artista afirmou: “Nas telas expostas todas as crianças sorriem e o texto enaltece e empodera essas crianças desviantes — finalmente! — chamando-as de deusas ou nomes de super-heroínas".

“A linguagem da pintura também nos insere na História com orgulho e força, diante de uma sociedade que nos quer invisíveis. Nós, LGBT, já fomos crianças. Esse assunto incomoda porque nós nunca viramos LGBT, nós sempre fomos. Todos nós devemos cuidar das crianças, não reprimir a identidade delas nem seu modo de ser no mundo, isso é muito grave.”

    Queermuseu

     

    O artista Fernando Baril também encontrou resistência em sua obra Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva, feita em 1996. Ao jornal Zero Hora, ele explicou:

    "Era uma semana santa, e eu estava lendo sobre as santas indianas, então resolvi fazer uma cruza entre Jesus Cristo e a deusa Shiva. Deu aquele montaréu de braços carregando só as porcarias que o Ocidente e a Igreja nos oferecem. Certa vez, Matisse fez uma exposição em Paris e, na mostra, tinha uma pintura de uma mulher completamente verde. Uma dama da sociedade parisiense disse 'desculpe, senhor Matisse, mas nunca vi uma mulher verde', ao que Matisse respondeu que aquilo não era uma mulher verde, mas uma pintura. Aquilo não é Jesus, é uma pintura. É a minha cabeça, ponto. Me sinto bem à vontade para pintar o que quiser."