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Entrevista com Teixeira Coelho: “Não é o caso de esperar pela solução do problema na cidade toda para decidir o que fazer com o vão livre do MASP”

Blog Cosmopista, 02.12.2013

Um recente depoimento de Teixeira Coelho, curador do MASP, reproduzido na imprensa (ver http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sem-seguranca-mostra-e-cancelada-no-masp–,1097299,0.htmhttp://www.estadao.com.br/noticias/impresso,e-preciso-preservar-o-masp-,1098579,0.htm) sobre o cercamento do vão-livre do museu na Avenida Paulista causou controvérsias e gerou debates em mídias sociais. Procurei Teixeira Coelho para uma entrevista exclusiva para o Cosmopista para que ele pudesse esclarecer seu posicionamento sobre o assunto. O meu compromisso foi que suas respostas seriam publicadas na íntegra, sem qualquer tipo de edição. Seguem assim o texto enviado pelo curador por e-mail. - Gabriel Kogan

Gabriel Kogan: Você alguma vez falou as frases: “Estão molestando não só os monitores da exposição como funcionários do museu sem que possamos fazer nada, pois foram inúteis todas as nossas tentativas de mostrar ao IPHAN que o MASP precisa ser cercado”, “A proposta de cercar a área não eliminaria o problema, mas amenizaria a situação” e “Acho um atraso essa posição do Iphan, pois a São Paulo de hoje não é a mesma da época em que o MASP foi inaugurado”? Se sim, em quais contextos?

Teixeira Coelho: Sim, devo ter dito todas elas, é provável que tenha dito todas elas. “É provável” porque não gravo o que digo a jornalistas em conversas ao vivo ou ao telefone, embora gravar. E sim, os contextos, ou melhor, os temas, são distintos.

Este trecho está correto: “estão molestando não só os monitores da exposição como funcionários do museu sem que possamos fazer nada”. É um trecho bem claro e é isso mesmo o que acontece. Os funcionários do museu nada possam fazer em certas situações porque são ameaçados.

Este outro trecho deve também corresponder ao que eu disse: “pois foram inúteis todas as nossas tentativas de mostrar ao IPHAN (instituto do patrimônio histórico nacional) que o MASP precisa ser cercado”. Mas estão misturadas numa mesma frase questões diferentes, mencionadas sob perspectivas diferentes, no entanto, aqui associadas como se intimamente ligadas. O tema da segunda parte é outro. O MASP não foi ao IPHAN pedir para o museu ser cercado de modo a impedir que monitores e funcionários sejam incomodados e ameaçados com faca, como a frase deixa entender. O MASP, sim, pleiteia há muito tempo que lhe seja reconhecido, no interesse da arte e do público que quer conhecer a coleção em mínimas condições de segurança, o direito de manter no local a divisória de vidro que envolve uma área reduzida do vão livre que dá acesso imediato às escadas e aos elevadores e onde está instalado um detector de metal como em todo museu do mundo, hoje – um detector que tem de estar fora do museu em si e não dentro dele. Essa frágil e simbólica divisória de vidro é a única coisa que garante ao museu que um espaço mínimo à frente de sua entrada seja mantido livre quando das dezenas de manifestações que ali acontecem no ano. Os manifestantes respeitam essa divisória e essa área – quer dizer, respeitam o museu –, o que não serve de muito porque a calçada e a avenida ficam completamente obliteradas e praticamente ninguém se atreve a entrar no museu nessas ocasiões. Quando de certos eventos, aliás, o poder público sugere ou recomenda fortemente que o museu simplesmente feche as portas porque ele, o poder público, não pode garantir a segurança do museu. Mas o museu não pode fechar as portas toda vez que há uma manifestação no vão livre ou na avenida. Os órgãos do patrimônio não querem a divisória, nem a bilheteria instalada diante dos elevadores. Quando o MASP foi construído, São Paulo era uma cidade civilizada, era possível passar diretamente da rua para o museu. Hoje, não. São Paulo é uma cidade que sequer oferece banheiro público às pessoas nas ruas. O MASP tem banheiros que seriam totalmente públicos (hoje são bastante públicos) sem a divisória. A pinacoteca passou a cobrar ingressos para evitar que seus banheiros fossem os banheiros públicos da área. É triste, mas é assim. A cidade está completamente desequipada de serviços públicos há décadas, entra governo sai governo, e entidades como os museus não podem servir de alternativa.

Por outro lado, os arquitetos que o MASP consultou não conseguem colocar uma bilheteria dentro do prédio sem alterações arquitetônicas internas – e os órgãos do patrimônio não autorizam essas alterações. Os órgãos do patrimônio querem que tudo que está no vão livre junto às escadas e elevadores seja eliminado e que o MASP se vire como puder. O problema não é simples. O MASP de inicio ocupava só a parte acima da avenida. Depois, incorporou o chamado subsolo que não é subsolo. A partir desse momento, não parece haver outra solução de fluxo de pessoas dentro do museu, se não se fazem sensíveis mudanças arquitetônicas, a não ser com a bilheteria colocada, por enquanto, fora do museu, antes dos elevadores e das escadas. À entrada do museu, não dentro do museu. O problema é que o museu foi concebido para não ter entrada, a ideia era que as pessoas passassem da rua para o interior do museu como se o museu fosse o prolongamento da rua. Eram tempos civilizados… Como o MASP não encontra uma solução arquitetônica que atenda ao que querem os órgãos do patrimônio e, ao mesmo tempo, proteja os interesses da coleção e garanta a segurança e a comodidade de seus visitantes, já solicitou aos órgãos do patrimônio que seus arquitetos apresentem a solução que lhes pareça satisfatória. Nunca o fizeram, que eu saiba. Apenas querem que o MASP retire o que está ali. Relato aqui uma situação que se iniciou muito antes de minha chegada ao museu. Os problemas do MASP, um museu para a cidade, não são só do MASP. Mas parece mais cômodo dizer que são. Há dois direitos aqui: o do edifício que, de acordo com os entendimentos em vigor, deve ser preservado em sua concepção inicial custe o que custar, e os direitos da coleção em si e do público que quer visitá-la em situações adequadas. O valor cultural do edifício não é maior que o valor cultural da coleção, quer dizer, da arte. Não seria exagero propor o inverso – mas digamos que os dois valores se equivalham. Um edifício concebido para ser museu deve servir como museu e deve servir ao museu. Form follows function, propunham os modernistas de cuja matriz saiu esse prédio. Mas parece que aqui form rules function ou que a form quer comandar a função. O problema é que a arte e o museu mudam e os amigos do edifício, embora não o edifício ele mesmo, querem que ele continue igual a si mesmo e defina a função. A função define a arquitetura. Não? Ou: quando?

Há mais a dizer sobre as grades no vão livre (as divisórias de vidro junto ao elevador e escadas não são grades). As grades amenizariam a situação? Há anos, quando foi mais uma vez perguntado sobre o que poderia fazer para evitar que pessoas se lancem no espaço desde a esplanada do vão livre ou dele caiam, com consequências por vezes trágicas, o MASP respondeu do modo como poderia responder: que nada poderia fazer porque não tem poder sobre a área, que é da Prefeitura. Mesmo assim, observou que uma medida óbvia poderia ser tomada se se quisesse: grades (não verticais, mas inclinadas ou horizontais) ao redor da esplanada. Os órgãos do patrimônio não aceitaram. Na ocasião, o MASP sugeriu também grades rebatíveis diante do vão livre, que ficariam deitadas e incrustadas no piso durante o dia, invisíveis, e que seriam erguidas à noite. Os órgãos do patrimônio não permitiram. Muito bem. Hoje ninguém atento se atreve a circular pelo vão livre, depois que escurece, a fim de ver a vista (que não mais existe). O parque do Trianon era aberto, recebeu grades e hoje fecha ao anoitecer. O vão livre não é do MASP, o vão livre pertence à prefeitura, o MASP não pode fazer nada ali. À cidade ou à prefeitura cabe a decisão sobre o que fazer, como manter aquela área, cartão postal da cidade. O problema que o vão livre do MASP (mais do que o MASP) vive é vivido pela cidade toda, que não tem segurança nas calçadas, dentro dos carros e ônibus e dentro de suas casas e apartamentos.

O problema é comum à cidade toda. Mas não é o caso de esperar pela solução do problema na cidade toda para decidir o que fazer com o vão livre do MASP que não é do MASP, não? Se a cidade decidir que isso não é um problema e que tudo deve continuar como está – e o modo como as coisas estão ali foi mostrado por uma reportagem da folha dia 29 de Novembro– tudo bem. O MASP não propõe, o MASP não pede nada. E o MASP não pode apresentar a solução. Não lhe cabe fazê-lo administrativamente.

GK: Você é a favor do cercamento do vão livre do MASP?

TC: Na mesma entrevista em que me perguntaram sobre a solução das grades eu apresentei claramente minha alternativa preferida que, creio, não veio à tona: a ocupação cultural e artística do vão livre de modo pleno e permanente. O ano todo. Com concertos, como antes; com projeções de filmes, como durante a mostra de cinema, e com arte pública. Mas exposições de arte que possa ser mostrada publicamente, em caráter perene, não é possível porque todo fim de semana se armam ali as barracas de uma feira autorizada pela prefeitura e que tornam inviável expor qualquer coisa por um tempo longo: não é possível montar uma exposição na segunda-feira, tirá-la na sexta e depois repetir o processo na semana seguinte. O que há para ser mostrado tem então de ser confinado na esplanada, como a exposição “a terra vista do céu”, que interessa às pessoas e que deu àquela área, bem como à calçada diante do Trianon, um toque civilizado – que, em parte, não durou muito (do lado do Trianon a policia está presente 24 horas por dia, a situação ali é diferente). A vocação de toda aquela área é cultural e artística. Por enquanto, essa me parece de longe a melhor solução, a solução evidente: uma praça de artes que mantenha o caráter de praça pública inicialmente pensado para o lugar.

GK: Qual é a sua opinião sobre o editorial “É preciso preservar o MASP”?

TC: Não o li quando saiu, só dias depois e apressadamente, em viagem, não guardei seus termos. Mas a ideia do título está correta, não? Embora não esgote o assunto. É preciso preservar a coleção mais importante da América Latina e do hemisfério sul em seu gênero e garantir às pessoas a possibilidade de visitá-lo: isso me parece claro. Se o poder público quer praticar política cultural a sério, deve criar as condições para que as pessoas inventem seus fins culturais. Algumas pessoas, no passado, inventaram o MASP (assim como outras inventaram o MAM e o MAC e a Bienal) e colocaram a coleção à disposição pública – e hoje milhares de pessoas por ano inventam para si mesmas um fim cultural ao visitar ao MASP, ao quererem visitar o MASP: o poder público deve criar as condições para que as pessoas inventem seus fins em cultura. O MASP tenta criar as condições para que a coleção seja preservada e cumpra seus objetivos e para garantir que as pessoas tenham como atender a seus fins quando querem visitar o museu. Para isso, o museu recorre às divisórias de vidro ao redor dos elevadores e escadas. Se outras soluções são viáveis ou melhor, é algo que se deve considerar em conjunto, MASP e sociedade.

Mas o título do editorial, generoso para com o MASP, confunde de novo as duas coisas: o MASP e o vão livre do MASP que não é do MASP. Creio que as duas coisas devam ser preservadas: o MASP e o vão livre do MASP. A sociedade dirá o que quer preservar, se quer preservar, o que quer preservar. E como.

GK: Houve uso político indevido de sua opinião pelo jornal, relacionando sua frase com manifestações?

TC: Não pensei nisso, não me preocupei com essa questão, não me lembro dos termos do texto, que mal li. Como pessoa, apoio totalmente as manifestações de junho/julho. São o fato cultural mais importante no país neste curto e já cansado século, algo que deveria levar todos a pensar seriamente no que está acontecendo aqui. As pessoas estão simplesmente fartas e não é com os 20 centavos da tarifa. E é previsível que as manifestações continuem. O museu nada sofreu com elas. E nada tem contra as manifestações. Por certo, o museu tem de se preservar também diante das manifestações. Mas não foi esse o ponto de partida para estas discussões recentes.

GK: Pelo menos dois outros espaços do museu são frequentemente lembrados como exemplos problemáticos de intervenções em patrimônio moderno: o cercamento da escada do museu no térreo e a descaracterização da pinacoteca do último andar, com o fim da transparência e dos cavaletes de vidro. Qual é a sua opinião sobre a situação desses dois lugares?

TC: Parte da questão está respondida acima. A galeria do segundo andar não está descaracterizada, não concordo com essa descrição. Nenhum arquiteto pode pretender congelar na história um projeto expográfico, seja qual for o projeto. Ainda mais quando os projetos expográficos mudam constantemente conforme as necessidades da exposição. No passado, a expografia permanecia igual a si mesma porque os espaços que a acolhiam nem permitiam outra coisa, como no Louvre antigo. A exposição, quer dizer, a arte não deve se dobrar aos imperativos do espaço: o espaço deve servir à arte, à exposição. Não posso acreditar que Lina Bo Bardi defendesse isso ainda hoje. O museu mudou muito, a coleção aumentou muito desde então, a expografia não pode continuar a mesma de 45 anos atrás, de duas gerações atrás. Nem mesmo os órgãos do patrimônio insistem mais nesse ponto. O mundo muda, a cultura muda, a arte muda, as ideias sobre arte e sobre como mostrar arte mudam, os meios tecnológicos mudam os modos de expor arte. O ainda respeitado (creio) Marx observou, concordando com seu precursor Saint-Simon (também ele muito respeitável, parece), que a tecnologia muda a arte. A tecnologia muda a arte e muda os modos de expor arte. Muitos parecem querer um museu congelado, modo mais delicado de dizer que querem um museu morto. A tendência no Brasil para congelar a vida e o mundo, e com isso a cultura e a arte e as pessoas, é assustadora. A cultura brasileira sob muitos aspectos, talvez sob seus aspectos centrais, é muito conservadora.

Link para a matéria original: https://cosmopista.com/2013/12/02/entrevista-com-teixeira-coelho-nao-e-o-caso-de-esperar-pela-solucao-do-problema-na-cidade-toda-para-decidir-o-que-fazer-com-o-vao-livre-do-masp/