Você está aqui: Página Inicial / Dossiês / A Recorrente Vulnerabilidade do Ministério da Cultura (MINC) / Ao contrário dos bolsonaristas, militares não odiavam cultura

Ao contrário dos bolsonaristas, militares não odiavam cultura

Por Miguel de Almeida para a Folha de São Paulo em 29/06/2019.
Ao contrário dos bolsonaristas, militares não odiavam cultura

O diretor Roberto Alvim - Bruno Poletti/Folhapress

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/06/ao-contrario-dos-bolsonaristas-militares-nao-odiavam-cultura.shtml

Desconfio que o diretor Roberto Alvim não saiba quem seja Gottfried Benn. E, neste caso, vai uma palhinha: Benn foi um dos mais brilhantes poetas do expressionismo alemão —e o expressionismo alemão modulava em uma onda revolucionária.

Até que, com a chegada de Adolf Hitler ao poder, em 1933, Benn sofre um estalo e se perfila ao lado dos nazistas. É saudado por todos os novos companheiros, a começar por um entusiasmado Joseph Goebbels.

Afinal, Benn era uma referência intelectual na terra de Goethe. Aclimatando: seria assim como se Manuel Bandeira batesse botas pelo general Costa e Silva.

Mesmo na culta Alemanha isso ocorre: Benn foi mais badalado do que lido. Quando os nazistas passaram olhos em seus versos, ficaram horrorizados. Não poderiam aceitá-lo como companheiro de luta! E o colocaram de lado, avexados. Tivessem lido Heidegger ou Céline, seus outros parceiros de viagem, também ficariam escandalizados.

Alvim, nem de longe, pode ser equiparado a Gottfried Benn, muito menos Céline, e Bolsonaro não é nazista.

Mas Alvim, como o astrólogo Olavo de Carvalho e o próprio Bolsonaro, deturpam a história em favor de suas convicções. Carvalho e Bolsonaro o fazem por ideologia; Alvim, calculo, por desalento.

Tivessem os bolsonaristas assistido a alguma peça de Alvim, ele seria visto como um marxista globalista ou gramsciano da gema.

Imagino Silas Malafaia ou o banido Magno Malta na plateia de qualquer montagem feita por Alvim. Nem pagando mil flexões ou dando 30% para o dízimo escaparia de ir a Rio das Pedras.

De novo, mais desinformação quando Alvim convoca a todos para uma guerra cultural contra a esquerda. Ele se conforta no mesmo diapasão de seu compatriota de armas, o astrólogo, jamais admitido ao grupo da elite intelectual (porque é um zé mané). Os dois se esquecem de que o predomínio da esquerda sobre a direita no debate cultural brasileiro se deu por competência. Para cada Menotti del Picchia houve uma dúzia de Oswald de Andrade.

Senão, vejamos. Ao contrário dos bolsonaristas, os militares de 1964 não tinham horror à cultura. Longe de gostar da esquerda, porém conviviam no mesmo andar.

Alvim assumirá cargo na Funarte. Quem criou a Funarte, Carlucho? O ditador Ernesto Geisel. Curioso? Quem criou a Embrafilme? A Junta Militar —também conhecida como Os Três Patetas.

A Embrafilme produziu dezenas de cineastas de esquerda. Mais: uma lei do governo de Castelo Branco permitiu que parte do imposto devido na venda de discos estrangeiros pudesse ser reinvestida na produção de artistas brasileiros. É o que possibilitou os primeiros discos de Chico BuarqueGilCaetano e... dos direitistas Dom & Ravel.

Alvim, cadê Dom & Ravel?

Miguel de Almeida

Escritor e diretor dos documentários "Não Estávamos Ali para Fazer Amigos" e "Tunga, o Esquecimento das Paixões"

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/06/ao-contrario-dos-bolsonaristas-militares-nao-odiavam-cultura.shtml